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Em lembrança de Paixão Côrtes: um excerto de Waldomiro Manfroi

01 de setembro de 2018

O seguinte texto é um excerto do romance A confissão do espelho (Editora Movimento, Porto Alegre, 1999), do acadêmico Waldomiro Manfroi, ocupante da Cadeira 30. 

A passagem trata da influência de Paixão Côrtes e Barbosa Lessa nos costumes dos emigrantes que se transferiram para Santa Catarina e Paraná. Lá longe eles se tornaram gaúchos.

Assim, no texto de Waldomiro Manfroi, a Acadmia aqui consigna sua homenagem ao insigne folclorista, compositor, radialista e pesquisador brasileiro Paixão Côrtes, Sócio Homorário de nosso sodalício, falecido em 27 de agosto de 2018.

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Os pais concordaram com o namoro, desde que o casamento fosse celebrado logo. E para demonstrarem seu apoio, acenaram com a oferta de uma filial do seu comércio em Pato Branco. Estavam felizes e preocupavam-se com a única filha mulher. O lugar ficava distante, despovoado. Mas era de futuro.

E quando João tentou interromper a conversa, Rita atalhou-o, dizendo que essas tinham sido as razões do seu casamento apressado e de sua partida da Vila Paraíso. Isso, ao contrário do que diziam todos: que as razões de tal despropósito seria um caso de amor à primeira vista.

- E teu marido, o Armênio, nada notou durante a lua-de-mel? - perguntou João, querendo retomar a conversa.

- Meu Deus, pensei que nem lembravas mais esses detalhes.

- Como esquecer? O Armênio podia ter desfeito o casamento.

Rita apanhou um cigarro da bolsa, deu uma tragada profunda e, com voz trêmula, falando baixo como se fosse segredo, pediu que João acordasse. Estavam vivendo em outro mundo. Jamais imaginara que ele, um homem instruído, político de profissão, advogado, continuasse ligado a tais preconceitos. E voltou a pedir que não interrompesse a conversa, enquanto não chegasse ao fim do seu relato. Conheceria os detalhes de sua vida em sequência para que nada fosse esquecido.

Quando casara, não era tão ignorante como ele estava pensando. Na noite da lua-de-mel, portara-se como se fosse ingênua, envergonhada, medrosa. Quando o Armênio a abraçava, resistia. Somente cedeu depois de muita insistência. Os gemidos do marido, a respiração ofegante sobre ela fora o que sentira. Nenhum  outro prazer como esperava que acontecesse. E o pior foi depois, ele a seu lado, fumando, o olhar preso ao teto. Naquele silêncio cúmplice de dois corpos estranhos, os minutos eram horas, o coaxar dos sapos, trovoadas, a respiração dele, uma ventania. Sem falar uma palavra, apagou a luz e dormiu. Quando o dia clareou, continuou mudo, sem afagos, levantou-se e foi tratar dos preparativos da viagem. Fora essa sua lua-de-mel.

Não lhe restava outra alternativa, precisava continuar sua vida com o marido. Mas, ao se instalarem em Pato Branco, fizeram muitas amizades. O convívio com aquelas pessoas amigas fora importante. Trabalhava muito, a casa em construção, comida para operários, ajuda na venda, montes de roupa para esfregar nas pedras do rio. Os dias, as semanas voavam. A primeira gravidez surgiu logo e vieram os enjoos.  Os habitantes da região eram solidários, ajudavam. Passaram a chamá-los  de "os gaúchos", tratamento diferente daquele a que estavam acostumados. Na Vila Paraíso eram os gringos, gaúchos só conheciam de nome. A deferência fez com que providenciassem no aprendizado das tradições. O pouco que ela conhecia, tinha aprendido no internato. Na Vila Paraíso, nunca ouvira falar de tais costumes. Nas redondezas de Pato Branco, havia centenas de colonos, vindos do Rio Grande que, também, nada conheciam sobre aquela moda. Eram da lida com machado, foice, arado a boi, enxada. Derrubavam a mata, botavam fogo e semeavam milho. Quando a planta estava crescida, em vez de colher os grãos, soltavam os porcos para a engorda. Era uma cultura diferente da praticada pelos colonos da Vila Paraíso, que estavam acostumados com a engorda de porcos em chiqueiros. Em poucos anos, a floresta deu lugar a pastagens de horizontes distantes, parecidas com as fazendas dos gaúchos. Os colonos mudaram seus modos de trabalho, no lugar do porco passaram a criar gado e tornaram-se fazendeiros. Trocaram os tamancos, os chapéus de palha e as roupas de brim listrado, por botas, bombachas, guaiacas, lenço no pescoço e chapéu de aba larga e barbicacho. Compravam caminhões, camionetas, tratores e colheitadeiras. E mudaram suas festas. No lugar das  "surpresas", surgiram os bailes a la gaúcha. Paixão Côrtes e Barbosa Lessa estimulavam a cultura dos pampas. Por meio de seus programas de rádio, as mulheres aprendiam os detalhes das vestimentas, comidas preferidas, músicas e danças. Logo os homens construíram o primeiro centro de tradições gaúchas.  Armênio fora o primeiro Patrão. Para atender aos compromissos das festas na formação de novos núcleos culturais, ele começou a se ausentar nos fins de semana e a diminuir os cuidados com os negócios. Por fim, comprou um avião. Ele fazendo festa em Cascavel, Foz do Iguaçu, Amambaí, Goiânia, cercado de amigos, ela em casa, cuidando de tudo. O tempo passava tão ligeiro que, quando percebeu, os filhos compravam gilete para raspar o queixo e extrato para usar nos bailes. E não tardaram a manifestar o desejo de estudar na cidade. Não era só pelos estudos, queriam morar na terra dos gaúchos, de preferência na capital, onde havia bons colégios e a sede do time de futebol para o qual torciam. O Armênio, depois de muita discussão, aceitou a ideia. Mas não se afastaria dos filhos. No lugar de comprar um apartamento para eles, todos se mudariam para a cidade. Assim procedeu, trocou o comércio de Pato Branco e o avião por uma serraria e dois postos de gasolina. Mas ficou com a fazenda. Agora, para ela, tudo estava distante, diferente. Tinha mudado seus hábitos, não trabalhava, estava mais livre. Dinheiro não lhe faltava. Mas, desde então, sua vida mudara muito. Lá fora eram tratados como gente importante, na cidade grande, no meio da multidão, eram desconhecidos. Os dois filhos maiores não conseguiram se adaptar aos costumes dos colegas e amigos e Armênio ficara mais retraído, triste, resmungão. Cada vez que ela falava em novas amizades, o marido a olhava desconfiado. Num domingo à tarde, enquanto Armênio fora ao futebol,  decidira aceitar o convite de uma amiga para ir ao cinema. Dissera-lhe que era um filme de amor, mas diferente: a mulher tomava a iniciativa para conquistar o homem. Era a artista que telefonava, marcava os encontros, fazia galanteios. Assim que o filme começou, Rita deixou-se envolver pelas cenas de amor. Quando o casal entrou abraçado e o homem apagou a luz do quarto, ela sentiu-se paralisar. Mas a mulher logo iluminou o ambiente, com todas as luzes do teto e da cabeceira. E principiou a despir o parceiro, lentamente, tirou-lhe a gravata, a camisa. Rita sentiu-se desfalecer. Na saída do cinema, despedira-se da amiga desfazendo o compromisso de acompanhá-la para um drinque no Mezanino do Cacique. Estava tão excitada que precisou voltar para casa de táxi. Sozinha no apartamento, serviu-se de uísque duplo com gelo. Vestira o conjunto preto de seda decotado, com alças, e esperou por Armênio. Tinha um homem em casa, isso era tudo. Quando ele abriu a porta, agarrou-se em seu pescoço e acomodou-o no sofá-cama.  A camisa ele deixava tirar, mas quando se ateve às calças, ela precisou de muita artimanha para convencê-lo a desafivelar a cinta. Ao deitar em cima dele, o susto: Armênio olhou-a com espanto e desprezo. Vestiu a roupa e desapareceu no corredor, depois de bater a porta com força. Gostara das cenas do filme, queria experimentar. Mas ele continuava com aquele olhar bronco, de vinte anos de ressentimento. Não sabia o que se passava dentro dos homens quando eram rejeitados pela mulher que eles desejavam. Ela era mulher, sabia o que elas sentiam: humilhação.

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 36

Lindolfo Collor

Lindolfo Collor nasceu em S. Leopoldo, em 4.2.1890 e faleceu no Rio de Janeiro, em 21.10.1942. Era filho de João Boeckel e de Leopoldina Schreiner Boeckel. Sua mãe enviuvou e contraiu novas núpcias. Lindolfo adotou o sobrenome Collor do padrasto.

Lindolfo Collor estudou o primário na Barra do Ribeiro, RS, e o secundário na escola do professor Emílio Meyer, em Porto Alegre. Diplomou-se em Farmácia, em Porto Alegre e na Academia de Altos Estudos Sociais e Econômicos do Rio de Janeiro, em 1922

Em 1908 trabalhou como jornalista em Bagé e depois dirigiu o Correio...

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