TEXTOSRESENHAS
Confissão no espelho: o tema do encontro especular - Léa Masina
12 de janeiro de 2019
Cardiologista renomado, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde exerceu o cargo de Pró-Reitor de Extensão, Waldomiro Manfroi desfruta o reconhecimento unânime de colegas, amigos e pacientes. Isso lhe é justamente devido em função do trabalho que há anos realiza, como médico e pesquisador de destaque nos meios científicos sul-rio-grandenses e brasileiros.
Mas sendo, por natureza, inquieto e criativo, já há algum tempo Manfroi vem-se dedicando também à produção literária. Sensível ao desafio de articular, no texto ficcional, suas vivências de menino interiorano, ele escreve motivado pelo desejo de dar forma a seus fantasmas e a suas pulsões psíquicas. A sede de universo, ou sede de abismo, no dizer de Cyro Martins, que impele um sujeito a produzir textos literários, decorre, no seu caso, da tensão originada pela coexistência, no seu mundo íntimo, dos valores advindos de diferentes estratos culturais. De um lado, seus textos registram a força larvar das raízes indígenas sedimentadas na terra; de outro, documentam também uma cultura de tipo popular, a que se somam influxos italianos, provenientes da cultura do Vêneto. Essa mistura, por sua vez, data da infância vivida em Pinhal, antigo distrito de Palmeira das Missões, no Rio Grande do Sul, de onde advém o substrato temático que dá forma a sua ficção.
Mas falar das narrativas desse médico-escritor obriga a tratar uma instigante questão: por que, cada vez mais, os médicos sentem a necessidade de traduzir, no texto literário, as suas perplexidades diante da vida e da morte ? Talvez a resposta esteja na essência da mesma da arte que, partindo de situações-limite, transfere para o universo ficcional algumas questões que são, na vida comum, fatalmente insolúveis. Tais questões, que sensibilizam o homem desde sempre, submetendo-o a um sofrimento insuportável, resumem-se na certeza de que vivemos de um modo trágico. E de que nos diferenciamos uns dos outros apenas pelo modo, apaixonado ou não, pelo qual nos debatemos no espaço que separa a vida e a morte. Escrever torna-se, pois, o registro de uma experiência de vida que se coletiviza porque se quer permanente.
Ao apresentar aos leitores A confissão no espelho, cabem algumas palavras sobre seu autor: as primeiras, para homenagear o autor pela tenacidade com que enfrenta os desafios do processo de criação literária, consciente de que o texto é produto de um fazer e refazer constante, em busca da forma que melhor articule, no texto, as ideias e as emoções. Depois, para dizer também o meu carinho pela pessoa humana, generosa, disponível, respeitosa. E pura o suficiente para acreditar no menino que foi e que agora faz ressurgir, travestido em personagem, nas páginas de sua novela.
Assim é que, lendo A confissão no espelho, o leitor irá se deparar com um narrador perplexo que acompanha a trama de Rita, João e Tabajara, recuperando um universo longínquo, em que os reencontros, as seduções, os sonhos, a angústia e os projetos de vida são estruturados em função de uma trama cuidadosa. Tabajara morre - ou não morre? João vivera - ou sonhara - sua experiência com Rita e Tabajara? Quais os limites entre a vida e a fantasia? O que pode ocorrer com um homem deslocado de seu meio natural, que se vê obrigado a conviver com a perversão da cidade? Que poder encantatório a música exerce sobre os espíritos mais simples? Disseminando essas e outras indagações no desenrolar do texto, o autor deixa que as personagens vivam situações dramáticas. Assim, a crueldade, o atraso, o preconceito, os afetos, a amizade e as afinidades pessoais vão compondo a tessitura de um texto que o leitor acompanha passo a passo, interagindo para preencher os silêncios propositais e as lacunas do enredo. O cotidiano das cidadezinhas provincianas, com suas quermesses e cinemas, com seus bares e pensões, dimensionam o cenário dessa narrativa povoada pelas histórias de índios pobres, de posseiros e invasores. Isso, sem o autor perder de vista que o amor, a paixão e o melodrama são, conforme já observou o escritor Vargas Llosa, os melhores ingredientes para os bons textos literários.
Porto Alegre, agosto de 1998.