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Um prêmio chamado Dyonélio Machado - Jonas Dornelles
13 de março de 2021
Jonas Dornelles
doutorando em Teoria da Literatura pela PUCRS
Nos tempos trágicos que o Brasil tem afundado nos últimos anos, a luta no front da pesquisa científica se faz cada vez imprescindível, na tentativa de iluminar um pouco o obscurantismo que tem dominado o país. Ainda mais em um ano atípico como 2020, quando vimos alguns dos princípios mais básicos da racionalidade pública sendo questionados de maneira sistemática e aterradora.
É nesse contexto que se destaca a importante defesa de valores humanísticos realizada pela Academia Rio-Grandense de Letras, em sua premiação ocorrida no último dia 14 de dezembro. Nessa data a instituição celebrou de maneira virtual seu já tradicional prêmio, que inclui um troféu de Escritor do Ano (que nessa edição foi concedido para Tabajara Ruas), além de condecorar produções no gênero da crônica, poesia, livro infantil, narrativas curtas e romances, assim como a melhor tese ou dissertação voltada para o tema literatura gaúcha.
Essa última premiação é bastante importante, já que premiações para teses e dissertações são incomuns, ainda mais quando pensamos o tema de pesquisa para que o troféu se volta: a literatura riograndense. Um campo de pesquisa bastante importante para cultura de nosso Estado, e que oferece a sociedade um aprofundamento em temas relativos à identidade regional, história e imaginário social, modalidades de ficcionalização próprias, etc.
Nessa última edição do prêmio da Academia Rio-Grandense de Letras recebi o troféu por minha dissertação, intitulada “As ironias de Dyonélio em O Louco do Cati”. Uma premiação que me enche de orgulho, já que meu trabalho foi o primeiro defendido na UFRGS a receber o prêmio. E orgulho em dobro, já que recebo o prêmio que leva o nome de um autor que já venho pesquisando há pelo menos seis anos: Dyonélio Machado.
Minha pesquisa propõe uma novidade nas interpretações já feitas sobre essa que é uma das maiores obras-primas do escritor. A obra possui análises consolidadas pela crítica, e citarei apenas uma, proposta por Flávio Moreira da Costa, e depois desenvolvida por Maria Zenilda Grawunder. O Louco do Cati seria uma potente alegoria, e no grito desesperado de sua personagem desesperada pode-se ler uma mensagem cifrada: um dos piores episódios da história do Rio Grande do Sul (e do Brasil) estaria voltando no presente.
O Cati funciona como referente metafórico para um dos acontecimentos mais tristes de nossa história regional, quando após a guerra civil que seria batizada como “Revolução de 1893”, fundou-se um quartel na fronteira do Rio Grande do Sul com o objetivo de “acalmar” os conflitos posteriores que pudessem surgir. Esse quartel ficava em terras do coronel chamado João Francisco, que se propunha a oferecer um centro de treinamento “científico”, e que acabou resultando numa espécie de continuidade do genocídio que já vinha acontecendo na região. O coronel ficou conhecido na memória coletiva como a “Hiena do Cati”, uma figura caracterizada por grandiloquentes discursos em meio a cadáveres dos “perdedores” degolados (por isso “hiena”, já que ria em meio aos mortos). Um caudilho que se conta que teria obrigado um filho a comer a carne “churrasqueada” de seu pai, e que certa vez teria assassinado presos políticos como se fossem gado de abate, degolando-os em fila. E que chegou a receber pensão do Estado como se fosse um herói republicano, antes de ser esquecido por essa modalidade de “amnésia” bastante conveniente para figuras públicas nefastas como ele.
O Louco surge na obra de maneira infantilizada ou animalizada, comendo lixo, com um rosto que chega a ser descrevido como um focinho, como se fosse um vira lata. Sua postura acovardada parecida ter resultado de maus tratos vindos de uma ditadura caracterizada pela manipulação de formas de violência as mais brutais, de maneira a produzir pessoas servis, “domesticadas”. Aspectos esquecidos da história regional, e que voltariam no presente, na modalidade de recordação alegórica proposta por Dyonélio Machado, que coloca na boca de sua personagem a denúncia desesperada “Isto é o Cati!”.
Há algo nas interpretações feitas de sua protagonista que o próprio texto favorece. O louco é uma espécie de vítima, reage histericamente quando reconhece a brutalidade que retorna nos discursos e práticas oficiais. Mas há algo além, e aqui que se apresenta a novidade de minha contribuição para a análise da obra. O Louco não deveria ser lido apenas como uma vítima, já que a partir de certos indícios, podemos indicar que também teria sido uma espécie de criminoso político que precisa lidar com o fato de que no passado teria cometido um homicídio em nome de alguma ideologia.
Em minha pesquisa encontrei indícios de que o próprio Dyonélio Machado teria talvez esperado essa análise. Sua tese de doutorado, Uma definição biológica do crime, descreve em certo momento o costume de homicidas se alimentarem de lixo para reviverem a intensidade de seu crime, algo que o Louco do Cati faz em dois momentos. E em sua primeira obra ensaística publicada, Dyonélio Machado fala de como o crime acaba sendo mobilizado por grupos de militares ou revolucionários em grandes acontecimentos políticos, sendo “perdoado” caso o lado vencedor possa oficializar sua versão da narrativa história. Assim, minha dissertação aponta para uma reconfiguração não só do Louco, como para o sentido oculto presente na metáfora do “Cati”: a relação entre crime e política.
Por esse viés, o romance de Dyonélio Machado adquire uma ambiguidade certamente paradoxal, e que vai no sentido do que chamo de “ironia dyoneliana”. O escritor chega a comentar em uma entrevista que a crítica não abominava suficientemente sua protagonista, mas a análise de que o Louco fosse um assassino nunca tinha se elaborado antes de meu trabalho. Associo essa dificuldade a ironia, característica que tenho ressaltado como distintiva da produção do escritor, podendo ser reconhecida também em outras de suas obras primas, como Deuses Econômicos. As ironias que se encontram em suas obras afastam as interpretações que associam sua produção a sua biografia, já que suas personagens não seriam apenas vítimas da ditadura, mas possíveis criminosos.
É curioso que um dos marcos da redescoberta de Dyonélio Machado tenha sido justamente a data de 1964, quando a política brasileira afundava em um cenário que parecia vindo de seus romances. Será que nossa realidade não tem se tornado novamente dyoneliana? Penso mesmo que não seriam apenas nesses momentos trágicos da história brasileira que Dyonélio Machado se faz atual, pois olhando de perto o cotidiano de uma parte expressiva da população marginalizada, podemos nos perguntar quando não o foi.
Nos últimos anos as últimas obras de inéditas do escritor estão vindo à tona através do trabalho do pesquisador Camilo Raabe. Para o ano que vem já se anuncia uma reedição de Fada, e podemos nos perguntar se não seria o momento de uma nova edição de Os Ratos, O Louco do Cati, e outras tantas?
Gostaria de acreditar que o reconhecimento da Academia Riograndense de Letras é mais um passo nesse processo de renovação contemporâneo da recepção desse que já foi um dos mais importantes escritores gaúchos. Em tempos de obscurantismo, precisamos entrar em contato novamente com sua literatura. Se os prognósticos de acelerado crescimento da desigualdade em nível mundial estiverem corretos, associados a percepção de retorno de grupos fundamentalistas mesmo nas nações mais ricas, podemos dizer que já não é apenas realidade brasileira como também a situação global, que caminha para se fazer cada vez mais dyoneliana. Lutemos como lutou o escritor gaúcho, que também foi médico e político: com as armas do esclarecimento!