TEXTOSENSAIOS
Caixeiro da Taverna: história social através do teatro - Moacyr Flores
30 de novembro de 2014
Resumo: Este artigo é uma reflexão sobre o uso da dramaturgia como fonte de estudo para a reconstrução da história social no Rio de Janeiro, na década de 1840.
O literato usa da criatividade e as normas da teoria literária para elaboração do texto. Há diversos tipos de literatura: poesia, conto, novela, romance e teatro. A dramaturgia coloca no palco uma representação dos dramas e realidades dos seres humanos. O historiador elabora a reconstrução do passado com o uso da pesquisa, teoria e metodologia. Segundo Marc Bloch, a história é a reconstrução da memória de um povo, portanto a história está sempre sendo reconstruída em cada geração.
A memória refere-se a algo que não existe mais, que acabou. Se o fato continua existindo, não é memória, é tradição. Reconstruir a memória é uma tarefa difícil porque depende de documentos que devem ser analisados e interpretados. Consideramos como documento tudo aquilo que o ser humano faz como imagem, poesia, mapa, fotografia, carta, romance, filme, pintura a óleo, musica e peça de teatro.
Como a literatura pode servir de documento para o historiador? Temos que considerar que a história usa dois fatores: espaço e tempo. Todo o fato ocorreu num determinado lugar e num certo tempo. O texto literário é considerado como documento se o autor coloca a ação no espaço e no tempo em que ele vive. Os chamados romances históricos, que o mais correto seria romance de época, apresentam erros gritantes, como o personagem usar um instrumento que ainda não foi inventado ou expor idéias fora da época, como falar em democracia no período do Brasil Colônia, ou de direitos humanos durante o Império.
As novelas Clarisse e Noite, de Érico Veríssimo, servem de documento para reconstituir Porto Alegre na época em que as obras foram escritas, porque o autor narra a realidade de sua época, aquilo que ele está observando.
É necessária a desconstrução do texto literário a fim de que se possa apreender o seu significado, pois todo o texto é o produto de uma mentalidade num determinado espaço e tempo.
A desconstrução, ou a busca do contexto histórico, é realizada através do filtro ideológico, filosófico, religioso e político do historiador. Num segundo momento chega-se à outra realidade, que é a transposição da realidade criada pelo literato e que depende da elaboração do historiador.
Para refletir sobre as possibilidades do uso da literatura como documento de uma época para o historiador, a farsa teatral O caixeiro da taverna, de Luís Carlos Martins Pena, permite o estudo da história social no Rio de Janeiro, em 1845, porque o autor viveu e conheceu a cidade, da qual elaborou diversas críticas em suas farsas.
Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro em 1815 e faleceu em Londres em 1848.
O caixeiro da taverna, peça teatral escrita em 1845, é uma comédia de enganos, onde um caixeiro português finge ser solteiro para conquistar a confiança da viúva, dona da taverna, e dela tornar-se sócio. Embora o tema seja a ambição do ser humano, que tudo sacrifica para realizar seu desejo, apresenta os costumes sociais da época. Por lei, a mulher era considerada incapaz de ser cabeça de casal, isto é, de gerir os bens da família. Se ficasse viúva, teria que entregar os negócios para um filho, parente ou tutor. Na farsa, a viúva Angélica, apesar de velha e feia, precisa casar para que o marido administrasse a taverna.
Taverna ou taberna, o mesmo que bodega é uma casa comercial que vende comida e bebida. O cenário é descrito como uma sala com portas laterais e duas no fundo, pelas quais se vê o interior da taverna com balcão e mais arranjos necessários. Na sala, onde se passa a ação, haverá algumas pipas, como é costume nas tavernas.
Manuel é o primeiro caixeiro, isto é o gerente, havendo no estabelecimento o caixeiro Antônio e o aprendiz José. Na sua primeira fala, Manuel faz as contas dos fregueses que compra a crédito, citando o major José Félix que deve 29$800 réis, dinheiro dado como perdido, porque o soldo do militar mal dá para pagar a casa e educar quatro filhos.
Manuel ordena que a Antônio que falsifique o vinho, enchendo as pipas com água, dois engaços de bananas e uma porção de pau-campeche para dar a cor. Diz para Antônio colocar u cartaz onde conste “único depósito da Companhia do Alto Douro”, pois o “público sempre se deixa levar por estas imposturas”. Martins Pena coloca em cena a propaganda enganosa.
Entra o latoeiro Francisco que se queixa da perda da freguesia que só querem comprar produtos dos latoeiros franceses. Queixa-se da concorrência dos alfaiates franceses, dentistas americanos, maquinistas ingleses, médicos alemães, relojoeiros suíços, cabeleireiros franceses, que têm a preferência dos compradores. A única coisa que ainda o salva é a fabricação de seringas, para jogar água no entrudo.
Na fala de Francisco há outra crítica à sociedade brasileira, quando se queixa que foi obrigado a seguir o ofício do pai, quando deveria ter ido a São Paulo estudar leis. Se isto tivesse acontecido, seria agora um deputado. Já no tempo de Martins Pena o maior número de políticos era oriundo dos profissionais de advocacia.
Manuel pede ao amigo que não conte seu casamento com a costureira Deolinda, pois confessa a Francisco que sua ambição maior é ser sócio da dona da taverna, a viúva Angélica e que ela não aceita homem casado como sócio. Uma fala de Manuel revela um dado importante da situação do caixeiro:
Manuel – E ainda sou caixeiro! Caixeiro! Sabes tu o que é um caixeiro? É um traste que paga imposto à Câmara Municipal, como qualquer carruagem ou burro.
Francisco sai de cena e entra a viúva Angélica que inicia um jogo de sedução, pois confessa que sem o trabalho de Manuel perderá seu negócio. Ela faz um pedido a Manuel, que caracteriza os costumes dos caixeiros do Rio de Janeiro:
Angélica – Espero que não freqüentes certas ruas desta cidade e que, sobretudo, não arranches para essas patuscadas dos domingos que fazem os caixeiros no jardim Botânico, nos canos da Carioca e nas Paineiras. Tens visto o resultado.
Manuel – Nunca gostei desses pagodes.
As certas ruas que a viúva se refere, são os becos onde existem casas de meretrício. A palavra rancho significava um grupo de pobres, arranchar-se seria agrupar-se em patuscada, isto é, em pândega com bebida e comilança. Ela prossegue com suas recomendações:
Angélica – Nem deves do mesmo modo freqüentar os bailes mascarados.
Manuel – Bailes? Não sei dançar.
Angélica – Manuel, nos bailes mascarados não se dança, joga-se! Dever-se-iam antes chamar jogos mascarados, ou outro nome que eu não quero dizer. Aí é que a perdição é certa. E o jogo tem levado muita gente boa à forca; vê lá se queres também.
Os bailes de máscaras nas bailantes e em salões nos fundos de cafés permitiam que mulheres e homens se divertissem sem se identificarem, permitindo uma frouxidão nos bons costumes da época.
Entra o sargento Quintino que vem tirar satisfação de Manuel porque lhe disseram que o caixeiro esteve à noite em casa de sua irmã. Manuel se defende:
Manuel - E o que prova isso?
Angélica – O que prova? E esta!
Manuel – Sua irmã não cose para fora?
Quintino – Cose sim senhor, e com muita honestidade.
Manuel – Pois então? Mandei fazer por ela umas camisas e fui ontem ver se estavam prontas; se quiser, vá perguntar-lhe.
Charles Expilly referiu-se às costureiras, vendedoras de fitas e de flores da Rua do Ouvidor que aumentavam a renda com outras atividades. As costureiras costumavam ir à casa de famílias para costurar. Outras trabalhavam com modistas francesas que copiavam a moda ilustrada no Jornal das Costureiras ou em gravuras dos catálogos que vinham das grandes lojas de Paris (Expilly, 1977, p. 31-33).
Costurar para fora tinha sentido pejorativo já naquela época.
O sargento Quintino informa que quer casar a irmã Deolinda com o alferes de sua companhia, provocando uma reação em Manuel, que logo disfarça. Naquela época os casamentos ainda eram arranjados pelos familiares. Resta a moça contrariada em seus anseios amorosos a fuga ou o casamento secreto, como foi o caso entre Deolinda e Manuel.
Quintino e Angélica saem de cena, logo após entra a costureira Deolinda, que não a quer na taverna. Ela chora e exige que Manuel declare o casamento. Ele promete esclarecer tudo no dia seguinte e quando abre os braços para abraçar Deolinda, entra a velha viúva, que se espanta com a cena. Manuel diz que está de braços abertos para que a costureira tire o comprimento dos braços para fazer as camisas. Desconfiada, Angélica interpela:
Angélica – Ah! A senhora é a Sra. Deolinda, que cose para fora e com muita honestidade?
Deolinda – Uma sua criada.
Angélica – E que vem em pessoa tomar medida aos fregueses... em suas próprias casas... e tudo com muita honestidade?
Deolinda – Minha senhora, a honestidade guarda-se em toda parte quando se é honesta; e quando não se é... mesmo sem que seja necessário sair-se de casa, praticam-se atos que envergonha...
Angélica. – o que?
Manuel. (Para Deolinda) - Cala-te!
Deolinda – e dizem-se palavras indignas de uma senhora de bem.
As duas se ofendem mutuamente até que se lançam uma contra outra. A chegada de Francisco separa as duas mulheres. Para complicar a situação, entra o sargento Quintino que lhe disseram que sua irmã Deolinda está casada e quer saber quem é o marido. Deolinda manda o irmão perguntar ao Manuel. Ele se engasga e diz que o marido é o Francisco. O sargento retira-se para encomendar um jantar para festejar o casamento da irmã. Angélica desconfiada convida Manuel para se retirar, a fim de deixarem a sós o Francisco com sua “esposa”.
Manuel e Angélica retornam com garrafas e param junto à porta. Para enganar a viúva, Francisco e Deolinda se abraçam. Manoel ciumento separa os dois, entrega as garrafas para Francisco e abraça Deolinda, pedindo perdão. Angélica se escandaliza e se dirige a Francisco:
Angélica – que escândalo! Assim deixa abraçar sua mulher? E vê isso bebendo? Que imoralidade que escândalo!
Francisco – Foi por distração e sede.
Deolinda se retira e Angélica confessa que pretendia casar com Francisco, mas que agora só resta rasgar a escritura de sociedade. Francisco joga-se aos pés de Angélica afirmando que não está casado. Entra o sargento Quintino e quando vê a cena, quer matar o Francisco. Entra Deolinda e confessa que seu marido é o Manuel. Por vingança a viúva dá sociedade a Francisco e quer casar com ele. Ao perder a sociedade da taverna, Manuel enlouquece e começa a berrar como um boi. Com pena do amigo, Francisco oferece-lhe sociedade na taverna, salvando Manuel da loucura.
A farsa O caixeiro da taverna estabelece os limites entre o espaço da mulher e do homem. O reino da mulher é o espaço sagrado do lar, onde a mulher está protegida pelo marido. O espaço público pertence ao homem, que trabalha e dirige os negócios para o sustento do lar. Manuel está casado em segredo, pois almeja se tornar sócio da taverna, contando com o costume que a mulher, no caso a viúva, não pode dirigir os negócios, ainda mais um ambiente como a taverna, onde há jogo, bebida comida e mulheres de má fama.
Em sua dramaturgia, Martins Pena considera a família como o sustentáculo da sociedade, apesar de mostrar suas mazelas e perversões. A falta de recato da viúva Angélica, que usa de todas as artimanhas para conquistar o caixeiro Manuel e depois o latoeiro Francisco, estabelece a situação da mulher que não pode ser independente e nem dirigir seus bens, a não ser sob a tutela de um homem.
Deolinda é pobre e seu marido secreto não pode sustentar a casa. Ela costura para fora, portanto sai do espaço doméstico e sua virtude é questionada, porque a mulher era considerada como emotiva, guiada pelos sentimentos e facilmente tentada pelo demônio que dela se utilizava para perder os homens no pecado maior da luxúria, que conduzia a todos os vícios. A Igreja Católica considerava a mulher como o anjo tutelar do lar, cedendo muito facilmente à tentação da sensualidade.
A viúva Angélica, apesar de ser proprietária de uma taverna, que é local de bebida e jogo, despreza a profissão de Deolinda, que tinha má fama tanto na França, com as midinettes, como nos Estados Unidos da América do Norte ou na Inglaterra.
A comédia mostra também a prepotência e a violência dos militares que estão representadas na figura do sargento Quintino.
Em outras farsas, Martins Pena colocou escravos em cena desempenhando diferentes tarefas. Nesta farsa há mão-de-obra assalariada. Cita uma relação de profissões, exercidas por estrangeiros, que tem a preferência do consumidor nacional, sem referência à mão-de-obra escrava, que era predominante em nossa sociedade.
Manuel se identifica como português. É interessante notar que a maioria dos caixeiros era de origem estrangeira, pois os nacionais desprezavam a atividade comercial. A idéia de que todo o comerciante falsifica a mercadoria está na cena em que Manuel ordena aumentar o volume das pipas de vinho do Alto Douro, com água, banana e pau-campeche.
O dramaturgo coloca em cena o cotidiano do Rio de Janeiro com a intenção de criticar e de fazer rir, sem que a platéia fique corada de vergonha.
Bibliografia
EXPELLY, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. S. Paulo: Nacional 1977.
FLORES, Moacyr. O negro na dramaturgia brasileira. 1838-1888. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
PENA, Luís Carlos Martins. O caixeiro da taverna. In Cadernos de Teatro n° 60, Rio de Janeiro, janeiro-março, 1974, p. 20-31.