TEXTOSENSAIOS

Zeferino Brasil: um poeta gaúcho, uma rua paulistana - Fábio Barreto

30 de dezembro de 2020

por Fábio Roberto Ferreira Barreto [1]

E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé
(Infância, Carlos Drummond de Andrade)

 Introdução

Este texto visa a tratar de Zeferino Brasil, poeta gaúcho que nomeia uma das ruas do Jardim Mitsutani, na periferia paulistana, Estado de São Paulo. Possibilitar, em especial ao leitor não especializado, conhecer a história desse poeta e analisar um de seus poemas líricos [2] são os objetivos principais deste trabalho.

É sabido que, na história da literatura, por razões bem diversas, algumas obras têm recepção positiva em seu contexto de publicação, alcançando um notório sucesso desde o lançamento; outras demandam um período para serem aceitas, haja vista terem superado um horizonte de expectativas preexistente [3]  – aquilo que se poderia chamar de estar à frente de seu tempo, quer pelo modo inovador de escrever quer pelo tema abordado.

O esforço deste texto é constituir-se como modesta contribuição acerca do poeta Zeferino Brasil, que, por sua obra e sua atuação em prol da literatura, gozou de grande prestígio em seu estado natal, no qual é conhecido como o príncipe dos poetas [4], sendo homenageado, inclusive, por agremiação esportiva respeitada no Rio Grande do Sul, bem como em logradouros espalhados pelo país, dentre os quais, na periferia de São Paulo. Não se trata de subir o poeta do porão escuro das letras nacionais ao alto de uma luminosa torre, mesmo porque, como se tentará escrever aqui, não é o propósito deste autor, tampouco parece que seja o caso de fazer justiça a um mártir da poesia deste país. Apreciar ou não, deve ficar para o leitor, cabendo aqui o dever de resgatar a memória de Zeferino Brasil.

Em síntese, o trabalho se ocupará de apresentar a relação entre o autor e poeta, alguns aspectos da teoria sobre sua poesia, análise do poema Morta e apresentação de sua obra poética.

O que se recebe com Letras com palavras se paga

Apesar de se pretender objetivo, é justo que se avise que as pretensões deste singelo texto são mais que subjetivas; dosasse com um pouco de razão as linhas que se seguem, nenhum texto se produziria. Morador desde o nascimento – após o parto no extinto Hospital Zona Sul, em Santo Amaro –, estudante de letras em uma universidade pública de São Paulo, ciente desde a graduação que sua rua homenageava um poeta, o autor desse texto, na verdade, devia uma reflexão sobre o tema. Não foi primeiramente, portanto, a curiosidade acadêmica que conduziu o trabalho, embora sem ela fosse, talvez, menos viável, mas uma obrigação moral de devolver um pouco dos impostos em forma de conhecimento que moveu a escrita. Cada um paga como pode! Não é?

Ainda entre letras e sentimentos: Paulista não é mais bonita do que a Zeferino Brasil

A Av. Paulista é um dos símbolos de São Paulo. Quem pode negar? Quantos cartões postais não povoam as mentes de turistas do mundo todo, em quais o MASP e o Trianon protagonizam? Imponente avenida de Sampa, em que se destacam suas arquiteturas das artes – deleite de que não me furto –, do poder industrial, de sede de rede televisiva, em cuja pista transeuntes caminham nos finais de semana, trabalhadores protestam no transcorrer da semana – a quantos não fui? –, torcedores elegem para comemorar títulos, e shows encerram e comemoram os vindouros anos.

Mas a Rua Zeferino Brasil, no Jardim Mitsutani, que não é mais importante tampouco mais bonita do que a Avenida Paulista, nos Jardins, para mim é mais importante e mais bonita, porque é a rua onde moro, em qual brinquei em minha infância, em qual fiz minhas primeiras amizades, em qual rememoro o primeiro beijo. Quem sabe por residir a vida inteira em uma rua cujo nome é de um poeta não tenha sido a razão pela qual me tornei amante de poesia?

Alberto Caieiro inspira:                                                  

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia                                                    
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia
(XX O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia)

Localizada no Jardim Mitsutani, bairro distrital de Campo Limpo, extremo sul da Capital, de São Paulo (bem próximo da divisa entre os municípios de Embu das Artes e Taboão da Serra), é continuidade da Rua Cabeceiras de Bastos, com qual forma uma espécie de U, interligando-se ambas à Av. Alto de Pirajussara, uma das principais vias da comunidade.

Mas quem foi mesmo Zeferino Brasil?

Zeferino Antônio de Souza Brasil [5] foi poeta, mas também jornalista. Nascido em Taquari, Rio Grande do Sul, em 24 de abril de 1870, faleceu em 02 de outubro de 1942.

Autor de razoável número de livros (lista no final), fundou a Academia Rio-Grandense de Letras, sendo o imortal da cadeira 24 (curiosamente, dia do meu aniversário, como o do poeta). Por ser figura expressiva em seu estado, tornou-se patrono da biblioteca do Sport Club Internacional, mais conhecido como Internacional de Porto Alegre, um dos maiores do futebol brasileiro; após sua morte, o clube o homenageou, a partir de movimento iniciado por sua companheira em vida, Celina Saul Totta [6].

Nos anos de 1970, o Sport Club Internacional fez uma campanha para aumentar o acervo da biblioteca. Além das doações que incentivou, comprou mais livros para o acervo e tratou de reimprimir algumas das obras de Zeferino Brasil.

A mestra Gisele Pereira Bandeira escreveu um interessante artigo sobre a relação entre o clube gaúcho e o poeta Zeferino Brasil: Sport Club Internacional e Zeferino Brasil: o progresso da matéria e do espírito [7]. Organizado pelo Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUC-RS, este texto, apesar de se ocupar de uma temática específica, apresenta contribuições importantes para esta publicação. É recomendável para curiosos ou estudiosos pelas relações entre futebol e literatura.

Como classificar sua obra poética

Inclassificável, provavelmente, não seja o adjetivo mais apropriado para qualificar Zeferino Brasil, mas é possível dizer que o poeta não se enquadra, especificamente, em uma escola literária. 

Alfredo Bosi, um dos maiores críticos literários do país, escreve que “Zeferino Brasil [...] alterna o tom decadente com retornos ao Parnaso” [8]. Isto é, reconhece ao menos duas tendências no príncipe dos poetas (do Rio Grande do Sul). Citando Muricy Andrade [9], Bosi afirma que o “grupo gaúcho, foi, no conjunto do Simbolismo brasileiro, o de expressão mais imediatamente europeizante” [10] BOSI, 2001, 284.

O poeta Manuel Bandeira, um dos mais renomados de todos os tempos, também encontra nas produções de Zeferino Brasil (ele escreve já com /S/)  registros parnasianos. Bandeira insere-o em Antologia  dos poetas brasileiros da fase parnasiana; bem como em Obras-Primas da lírica brasileira. [11] Vale ressaltar que a inserção de poesia “parnasiana” pelo grande poeta recifense corrobora  a tese de Muricy de que Zeferino Brasil versificou ecleticamente.

Segundo o próprio Muricy Andrade, todavia, em seu Panorama do movimento simbolista brasileiro [12], a mais completa sobre Simbolismo no país, Zeferino Brasil  ultrapassou os limites dos parnasianos e simbolistas. Andrade fala que foi “extremamente popular e estimado em seu estado natal. Começando Neorromântico, afirmou-se simbolista durante algum tempo, sofrendo mais tarde influência de Bilac [13].”

Massaud Moisés, outro grande nome da teoria literária do país, é o teórico que, ao menos em número de páginas e em análise, traz as contribuições mais relevantes sobre Zeferino Brasil; de fato, ele demonstrou ter realizado uma leitura ampla de obras do poeta. Assim como Muricy, Massaud Moisés não enquadra o poeta em uma escola ou tendência. Segundo ele, Zeferino Brasil é de um “caráter polimórfico (pois) nenhum outro simbolista tenha criado obra tão diversificada quanto ele” [14], embora afirme que sua “obra caducou em muitos aspectos, somente permanecendo válida a poesia lírica, suficiente, no entanto, para lhe conferir lugar de relevo entre simbolistas epigonais ou de segunda hora” [15] (o que, da leitura de três de suas obras, Vovó Musa, Alma gaúcha e Juca, o letrado, de quais apenas as duas primeiras em versos, parece ser, a meu ver, acertado: é possível que a melhor contribuição seja sua lírica mesmo – foram as três obras que pude adquirir, além de Visão do ópio, disponível na USP).

Enfim, embora seja interessante situar historicamente o príncipe dos poetas (gaúchos), pois nenhum texto literário é isento de marcas de seu tempo, a classificação literária é uma amarra que, não raro, impede uma análise mais apurada da obra dos autores. Metaforicamente, é dizer que não é o poeta que tem de caber na roupa da escola literária de que faz parte, mas as roupas, advindas de muitas possíveis leituras, que puderem vestir o poeta, depois de desnudado, que devem ser utilizadas; e, registre-se, conforme a lupa que se usa distintas vestimentas podem lhe cair.

No caso de Zeferino Brasil, pautando-se no material coletado, parece altamente recomendável que se adote tal procedimento; inclusive, por se tratar de uma obra que se estende por aproximadamente quatro décadas, entre 1891 e 1935, em quais variadas tendências circularam pelo país e pelo mundo, essa recomendação propicia que não se realize uma análise distorcida. Ademais, a leitura de obras não encontradas pelo autor deste texto pode revelar outros aspectos, bem como apenas corroborar o que já é apresentado pela crítica literária.

Escasso como o espaço deste trabalho

Todavia, antes de passar à analise de poema, um último registro: apesar de todo o esforço para valorizar o poeta Zeferino Brasil e sua obra, a escassez de registros é um aspecto que dificulta maiores considerações. Mesmo o crítico Alfredo Bosi, autor do manual de literatura mais reeditado no país, só dedica duas únicas linhas de seu História Concisa a ele. Afrânio Peixoto e Antonio Candido, de grande influência no século passado para pesquisadores e professores, em seus compêndios sobre literatura, nem sequer mencionam o nome de Zeferino Brasil.

Ao mesmo tempo, em São Paulo o sistema público de bibliotecas, demasiadamente diversificado, é extremamente pobre em obras de Zeferino Brasil. Na rede municipal, há apenas dois exemplares: Vovó Musa e Juca, o letrado, ambos no acervo da Biblioteca Mário de Andrade, apenas para consulta no próprio local. Na universidade de São Paulo, apenas dois exemplares também: Vovó Musa e Visão do ópio, ambos na Biblioteca Brasiliana Mindlin, de circulação restrita; no caso da maior instituição de ensino superior do país, não se deixe de ressaltar, a existência desses exemplares se deve, inclusive, à doação de acervo particular.

Ao pesquisar na internet para aquisição pessoal, é possível encontrar livrarias virtuais, em especial do Rio Grande do Sul, que têm exemplares de edições diversificadas. Mas nem toda a obra de Zeferino Brasil pode ser acessada. Alguns livros não estão à disposição para comercialização; o que se levanta a hipótese de que talvez não existam mais; salvo em acervos particulares. Consultas aos sistemas públicos de biblioteca daquele estado e do acervo do Internacional se fazem úteis; ao mesmo tempo, talvez fosse o momento de preparar uma reedição de sua obra ou, ao menos, de uma antologia de seus versos. Por que não? Ainda mais se considerarmos que neste ano se comemora o sesquicentenário de nascimento de Zeferino Brasil.

Alguma poesia de Zeferino Brasil

Se se trata de literatura, faz-se imprescindível analisar obras poéticas de Zeferino Brasil. Aqui segue a análise do poema Morta [16].

Morta

Morta é uma elegia – composição poética lírica cuja temática é terna e triste [17] –, concebida em seis sonetos, formando, sequencialmente, apenas um único texto em versos. Morta foi publicada em Vovó Musa, livro composto por três partes (Livro primeiro – Estrada de Espinhos, Livro Segundo – Palavras ao vento, Livro Terceiro – Versos antigos), repleto de sonetos decassílabos, mas com muitos poemas em alexandrinos, recorre a expediente não raro nesse livro: subdividir-se em sonetos; assim como os  poemas Balada do sonho, o primeiro (não intitulada) do Livro Segundo e Porém, Morta se compõe de partes muito bem demarcadas, que, constituindo significado em seu conjunto, não deixam de ser apreciados individualmente.

Especificamente em Morta, duas informações – elegia e soneto – remetem à preocupação estética de Zeferino Brasil, manifestando sua influência simbolista (razão pela qual faz parte da antologia de Muricy Andrade).

A utilização da epígrafe não é gratuita. Ao citar os versos de Camões [18], Zeferino Brasil situa o leitor duplamente: indica que a temática de seu poema dialogará com a do poeta luso e, ao mesmo tempo, remonta à tradição clássica. Não à qualquer, mas à lírica camoniana, que por sua vez, exerce influências ulteriores nas escolas literárias, em especial o Romantismo. Interessa notar que aqui se pode fazer, desde já, uma explicação sobre o Simbolismo: apesar de se preocupar com estética que se assemelha à parnasiana, por isso, neste caso Zeferino Brasil voltar seus olhos ao Classicismo lusitano, esse movimento literário elege temáticas que não se voltam para racionalidade, daí seu lirismo, neste caso também, aproximar-se dos românticos.

No poema que cumpre a função de prólogo [19] e, ao mesmo tempo, intitula o livro, o eu lírico anuncia que o poeta afirma que “trabalhei nestes versos” por influência – inspiração – de sua vovó. Ironicamente, o eu lírico, afirma que Vovó não é “nenhuma sirigaita”, mas uma “santa velhinha” que não tolera “verso nefelibata” (que anda nas nuvens), a qual o aconselha a escrever “desprezando [...] esdrúxulas Normas” (com maiúscula), pois, afinal, “originalidade é dizer coisas novas/ Dentro das velhas Formas” (também com maiúscula).

É possível deduzir que esse prólogo anuncia que se trata de poemas, no caso do livro em questão, que dão a dimensão do embate entre e Parnasianismo e Simbolismo. Opor a figura que o imaginário constrói sobre a musa nova e sedutora a de uma senhora sábia, é um indicativo de que a intenção lírica deve sobressair. Assim, sob recomendação, não de um ser sobrenatural, entre deuses e mortais, como na Antiguidade Clássica, mas de, sentimentalmente, de sua Vovó: “Filho, isso tudo passa”.  Não se esconde, pode-se deduzir, um apego ao Romantismo, estilo artístico ultrapassado nas tendências daquele tempo, exortando também a abandonar influências do Realismo, a ponto de textualmente pedir para deixar de livro “Cartas de Fradique”, de Eça de Queirós.  Em outras palavras, emoção por razão.

Para todos os efeitos, aqui – apesar de um apontamento ou outro que julgarmos pertinentes –  preferimos nos ater ao aspecto lírico desta composição poética, uma vez que, provavelmente, seja o único consenso entre os teóricos consultados sobre a obra de Zeferino Brasil em sua totalidade. Que fique o gosto pela poesia exaltado, na singela análise que vou fazer sobre Morta.

Algumas notas

Em sua forma, Morta a preocupação com a estética se evidencia na utilização de versos decassílabos.

     1           2         3      4     5     6     7    8       9         10

BRAN/CA, EN/TRE/ LÍ/RIOS/ E/ CA/MÉ/LIAS/ , MOR/TA 

Por se destinar a todo tipo de leitor, vale lembrar alguns ensinamentos sobre versificação. Na verdade, duas observações importantes.

1) A escansão poética se diferencia da divisão silábica: a professora Goldstein, em um livro básico sobre o tema, ensina: “Nem sempre as sílabas poéticas correspondem às sílabas gramaticais. O leitor-ouvinte pode juntar (ou separar) sílabas, quando houver encontro de vogais”. Por essa razão, conta-se como única sílaba métrica  o encontro entre as sílabas convencionais em maiúsculas: “BranCA, ENtre”

2) Como lembra, ainda, a professora Goldstein, “Ao escandir, isto é, dividir um verso em sílabas métricas, em português, deve-se parar na última sílaba tônica”. Por essa razão, em /MOR/ da palavra “morta”.

Mais do que isso outros elementos sobressaltam: preocupa-se excessivamente em explorar sons. Observemos a primeira estrofe:

BraNca, eNtre lírios e caMélias, Morta
Vejo-a, sereNa flor esMaecida...
AproxiMa-se o iNstaNte da partida
E, ai! coMo esta certeza descoNforta 

A estrofe inicial é introduzida por aliterações com consoantes nasais. Nesse poema, não parece ser equivocado afirmar, auxiliam o poeta a inserir seu leitor na lânguida morbidez do tema: morte da amada. Subsidiado por Goldstein[20], “não estou afirmando” que “esta letra ou outra, bem como qualquer repetição”, gratuitamente, formariam tal sentido: afinal, amparado nessa lição, “só adquire sentido apoiada nos outros elementos”. Isso leva à suposição de que tal estratégia colabora com toda a situação comunicativa que envolve o texto poético de Zeferino Brasil.

Tal assertiva é confirmada se se verifica as estrofes seguintes. Com intensidade menor do que na primeira, mas sem ocultar o sentimento de perda que a produção poética busca enfatizar.

Lembra Alfredo Bosi, “em suma, o Simbolismo, como técnica, é o sucedâneo fatal do Parnasianismo” [21]. Mas, ainda é Bosi que ensina entre Parnasianismo e Simbolismo, “o Romantismo sobrevivia entre nós” [22]. Como explicitei acima, vamos aqui evitar as interessantes discussões que o poema poderia trazer sobre as escolas; lembrando que, sendo poeta cuja obra transitou entre movimentos, vamos nos ater a beleza estilística de Zeferino Brasil no labor de Morta.

Não à toa, dando um salto, uma vez que nos sonetos III, IV e V, o eu lírico continua a expor seu sofrimento, no sexto soneto, que finaliza o poema  Morta, escreve que “sonha” com a noite de amor com a amada:

Eu SONHO que ela vem do céu, e, em meio
À minha triste solidão, à pouca
Luz que há na alcova, trêmula, destouca
As tranças de ouro... Escuto um vago anseio

DESPE O COLO, E NUM LÂNGUIDO GORJEIO
DE AMOR, MEU CORPO ENLAÇA, ANSIOSA E LOUCA,
COLANDO SUA BOCA À MINHA BOCA,
E O SEU SEIO POUSANDO NO MEU SEIO...

Em seu “sonho”, o desejo de copular com a amada é anunciado na primeira estrofe. O leitor, já conduzido pela estrofe anterior, depara com a nudez sensualizada da segunda estrofe, formando imagens de como se iniciam e como terminariam as relações carnais. Todavia, antes de atingir o clímax, é surpreendido pelo verso inicial da terceira estrofe, que explica ser apenas um “sonho”.

De súbito DESPERTO, sim, DESPERTO

Resta ao poeta, lamentar-se:

E, chorando, hoje vão pelos espaços
Os meus beijos em busca de seus beijos,     
E os meus braços em busca de seus braços 

Essa suspensão do ato de amor faz reminiscências ao Romantismo, em qual a infelicidade no amor fez-se marca em uma de suas fases.

Veja o porquê, mais uma vez de nos deter apenas no lirismo de Morta. Na verdade, embora tenham “permanecido por muito tempo ora paralelos ora misturando-se”, Parnasianismo e Simbolismo, como escreve o crítico Afrânio Coutinho,  se diferenciam por este último  basear-se em oposição ao primeiro. Se o Parnasianismo defende o impessoal, o Simbolismo baseia-se no subjetivo; se aquele visa ao objetivo, este ao subjetivo; se outro à precisão da natureza, este ao vago, misterioso e ilógico. Zeferino Brasil, nesse poema, é extremamente subjetivo: trata-se de um eu lírico que entoa lamúrias pela perda de sua amada. Ao mesmo tempo, “com traços ultrarromânticos”, como destacaria o professor Muricy, exagerados versos sobre a representatividade que tal perda envolve. E, finalizando, à parte essa discussão, é esteticamente bonito.

“Que formosa!” – suspira o céu ao vê-la
“Que testa de anjo e que cabelo louro!”
Soluçando murmura cada estrela

Quase juvenis os versos, desejosos de ignorar a razão em torno de, quiçá, um “sonho” – o de que sua amada fosse divinalmente maior e melhor do que as outras reles mortais, suscitando presença e manifestação de entes celestiais.

Uma breve explanação faz-se pertinente, aqui, a nosso ver: contextualizar a produção poética. Publicado em Vovó Musa, no ano de 1903 pela primeira vez, naturalmente sofre influência positivista e, nos limites de seu eurocentrismo, também sobrevalorizando traços fenotípicos: além da tez raça ideologicamente defendida como superior – “branca” – , precisa ser “loura”. Ademais, registre-se a influência do cristianismo, em especial católico, “lírios e camélias brancas”, cuja significação remetem à pureza e inocência – esta associada, inclusive, a traços de virgindade como atributo de mulher ideal, o que, na sugestão que a composição poética permite, sem anacronismos, garante grandes debates nos dias atuais – assim como no que concerne a questões etnicorraciais sobre padrões de beleza.

Voltemo-nos, entretanto, à composição estilística, neste poema. Não à toa, que no soneto II, em especial na segunda estrofe, suscite que todo o universo pare:

ElA morreu, sonhAndo! AmortAlhAi-A
Flores, Astros e versos de AmetistA!
Que A trevA pArA sempre me revistA!
EstrelAs, sóis, elA morreu, chorAi-A!

A repetição de palavras é outro recurso utilizado pelo poeta. A “morte” é reiterada, por meio da alternância da ordem dos constituintes no primeiro e no último verso da parte I. Um comentário mais se faz pertinente aqui: nessa estrofe, o recurso de assonância é empregado por Zeferino Brasil para, a nosso ver, enfatizar a tristeza em sonoras interjeições com som de /A/; sobretudo, ao final dos versos interpolados em que o poeta lança mão da forma imperativa com o fito de ordenar que todos derramem prantos pela amada, “branca”; acompanhando a professora Goldstein, essa interpretação se faz a partir do contexto do texto poético.

Ressalve-se que a palavra “branca” se faz adjetivo da “morta” no primeiro verso, mas das flores, por isso pluralizada, no último verso. Para além dos sons, proposital visa a reforçar alvura da amada, no que tange à pureza, já mencionada, e a questões etnocêntricas, também mencionadas.

Branca, entre lírios e camélias, morta
_____________________________

Morta, entre lírios e camélias brancas

Ainda neste soneto II, amplificando a atmosfera de dor do eu lírico, as segunda e terceira estrofes se iniciam com: “Ela morreu”. Na segunda a exclamação, aparece após a palavra “sonhando”, entre elas uma vírgula; na terceira, não: a exclamação aparece logo após o verbo! Na sequência, parece contribuir para gradação mórbida que se propõe nos texto.

De um lirismo agradavelmente juvenil, para além de quaisquer tendências, a estrofe final da parte II, é coerente com a gradação de dor de que se revestem os dois sonetos. Leiamos:

Dizer-lhe, enfim, com voz magoada e doce,
Que seu olhar de morta inda cintila
No meu olhar como se viva fosse.

Assim, a amada falece fisicamente, mas permanece viva para o eu lírico e entre nós por meio do poema.

Considerações finais

Diminuta contribuição se pretendeu apresentar aqui sobre o poeta Zeferino Brasil. Se o que mantém vivo um poeta é ler e discutir sua obra, este trabalho busca cumprir seu papel, ciente da extensa pesquisa que se deve fazer ainda. Mas se se considera que em vida tenha recebido a alcunha de “príncipe dos poetas” em seu estado, parece ser menor o espaço que Zeferino Brasil ocupa no atual cenário da literatura brasileira do que, talvez, mereça; que os estudos confirmem ou não.

Não se trata de ingênua manifestação; sobretudo, se se considera o envolvimento emocional do autor deste artigo com o poeta. Zeferino Brasil, por ter vivido em um período de transição, por ter sido multifacetado, por tantas outras razões, possivelmente, não parece fazer jus à tão escassa fortuna crítica como tantos outros nomes da literatura de seu tempo. Destarte, não se trata de enaltecer, mas valorizar sua obra. Como se afirmou no decorrer do trabalho, reeditar sua obra na íntegra ou preparar uma antologia: talvez seja justo realizá-lo neste momento em que há uma comemoração tão importante: não é todo dia que se completa 150 anos de nascimento.

Bandeira, um dos maiores gênios do verso em língua portuguesa, na citada Obras-Primas da lírica brasileira, escreve com entusiasmo sobre a vivacidade de Zeferino Brasil: “Era comovente vê-lo, com seus setenta e tantos anos, interessado pelas produções dos novos” [23]. E com essa citação se pretende encerrar o trabalho, fomentando, antes, enfatizar a importância de se ler Zeferino Brasil: não seria o caso de talvez, motivados pelo mesmo espírito, retribuir tal gentileza e, ao menos, ler por fruição sua obra? Quiçá, depois, escrever algumas malfadadas linhas?

Bibliografia

BANDEIRA, Gisele Pereira. “Sport Club Internacional e Zeferino Brasil: o progresso da matéria e do espírito”. Papéis nada avulsos. Maria Eunice Moreira (org.). Série Delfos. EDIPUCRS: Porto Alegre, 2012. p. 115-132. 

BANDEIRA, Manuel. Antologia  dos poetas brasileiros da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Instituição Nacional do Livro, 1951. p. 272.

BANDEIRA, Manuel Obras-Primas da lírica brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1943. p. 226-227.

BOSI,  Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 39ª ed. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 263-287.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 6.ª ed. São Paulo Global, 2002. 315-319.

DELFOS. Zeferino Brasil. Centro de Documentação da PUC-RS. Disponível em: http://www.pucrs.br/delfos/?p=zeferino. Acesso em 14 de agosto de 2018.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1985.

MASSAUD, Moisés. A literatura portuguesa através dos textos. 17.ª ed. São Paulo: 1988. p. 67-73.

MASSAUD, Moisés. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1988. p. 415-420.

MURICY, ANDRADE. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. p.431-434.

ANEXO - Obra de Zeferino Brasil

Alegros e surdinas (versos dos 15 anos) – 1891, em Porto Alegre, pela Livraria Americana.

Traços cor de rosa (verso) – 1892, em Porto Alegre, por Oficinas tipográficas do Jornal do Comércio. Comédia da Vida – 1896-1897, em Porto Alegre, pela Tipografia Jornal do Comércio.

Juca, o letrado (estudo da psicologia mórbida) – 1900, em Porto Alegre, pela Tipografia do Correio do Povo.

Vovó musa – 1903, em Porto Alegre, por Brasil Meridional.

Visão do ópio – 1906, em Porto Alegre, por L. P. Barcellos & Cia. - Livraria do Globo.

Torre de marfim – 1910, Porto Alegre, pelas Oficinas da Livraria do Globo.

Comédia da vida. Versos alegres para gente triste. 2ª série. – 1914, Porto Alegre, pelas Oficinas tipográficas de Carlos Echenique.

Teias do luar – 1924, Porto Alegre, por Barcellos, Bertaso & Cia. Livraria do Globo.

Bohemia de Penna (prosa velha) – 1932, Porto Alegre, pela Livraria Selbach – Livro do Globo.

Alma gaúcha – 1935, Porto Alegre, pela Livraria Selbach.

 


[1] Mestrando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e professor da rede municipal de ensino de São Paulo.

[2] Zeferino Brasil escreveu prosa e poesia; de composições em versos destacam-se versos épicos, como de Alma gaúcha, em atitude ufanista em relação ao povo de seu estado, e líricas, sentimentais. Concordando com o teórico Massaud Moisés, acredita-se que as últimas são melhores que as primeiras. Considerando esse aspecto, bem como a dificuldade para acessar toda a obra do poeta, este texto visa a discorrer sobre uma das poemas de seu livro mais festejado, o que revela desde já a limitação deste trabalho.

[3] JAUSS é um teórico da literatura que escreve muito bem sobre o assunto. Segundo ele, Flaubert, hoje considerado um dos maiores escritores de todos os tempos, não fez sucesso ao publicar seu famoso romance Madame Bovary.

[4] Como ficou conhecido em seu tempo.

[5] Segundo Delfos Espaço de Documentação e Memória Cultural, o nome é Zeferino Antônio de Souza Brazil, embora se encontre em alguns sítios eletrônicos o nome Antônio de Souza Zeferino Brasil. Ademais, a grafia é, conforme época, BraZil, com /Z/; Muricy Andrade, Alfredo Bosi e Massaud Moisés empregam com /S/, assim como se registra em São Paulo, mas a Biblioteca do clube gaúcho preserva com /Z/. 

[6] Disponível no portal do clube: . Acesso em 12.08.18.

[7] Moreira (org.), 2012, 115-132.

[8] BOSI, 2001, 284

[9] José Cândido de Andrade Muricy nasceu no Paraná. Entre seus livros, Bosi consulta O suave convívio e Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro (este último consultado por nós também).

[10] BOSI, 2001, 284

[11] BANDEIRA, 1951 e. 1943.

[12] MURICY, 1987, 431.

[13] IDEM.

[14] MOISÉS, 2016, 415.

[15] IDEM.

[16] Muricy Andrade apresenta dois sonetos sob a rubrica Morta, analisadas aqui; mas Massuad Moisés lembra há seis sonetos que levam tal rubrica. De fato, tanto na publicação da segunda edição, de 1917, bem como na de 1973, reeditada pelo Internacional, Morta se compõe de seis sonetos, que independentes na estruturação, em conjunto, formam um sentido. Também para Massaud foi nos sonetos que Zeferino Brasil atingiu seus “resultados mais eficazes”, razão pela qual tenha optado distribuir a temática desses sonetos nessa forma fixa.

[17] HOUAISS, 2001, 1108.

[18] Não ignoramos autoria de Camões, embora registremos que, pelo “princípio da imitação [...],  ter-se-ia inspirado no soneto de Petrarca – Questa anima gentil che si diparte – o poeta lusitano". Para nós, especificamente, na análise de Morte de Zeferino Brasil se reforça a “estética” clássica. Literatura portuguesa através dos textos, de Massaud Moisés, subsidia essa reflexão.

[19] Expressão utilizada em diálogos da tragédia grega, para introduzir a temática do texto, empregada para quaisquer produções na atualidade para indicar de que se assunto se tratará no texto.

[20] GOLDSTEIN,1985,  50.

[21] BOSI, 2001, 269.

[22] BOSI, 2001, 268.

[23] BANDEIRA,1943, 226.

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 34

Fernando Osório Filho

Fernando Luís Osório Filho nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 03 de novembro de 1886, filho de Fer-nando Luís Osório e Ernestina de Assunção Osório. Formou-se bacharel em Direito pela Faculdade Livre de Direito no Rio de Janeiro, em 1910. Exerceu a advocacia em sua cidade natal. Foi catedrático de Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito de Pelotas. Fundou e dirigiu a Academia de Comércio de Pelotas.

Foi professor do Ginásio Pelotense, diretor da Escola de Artes e Ofícios de Pelotas e presidente...

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