TEXTOSRESENHAS
Pequeno comentário ao romance "Vestígios" - Dulcineia Santos
07 de setembro de 2015
Conta Catão, o Velho, no livro de Cícero, Saber envelhecer, subintitulado Seguido de A Amizade (L&PM Pocket), que Sófocles sofreu uma injuriosa investida dos filhos, quando os dias já lhe avançavam bastante a idade: recorreram à Justiça para interditá-lo, alegando a negligência dele com os negócios da família, devido à dedicação ao ofício da escrita, com as tragédias. Narra que, em Roma, era comum retirar dos pais considerados incapazes, portadores de debilidade senil, o direito de administrar seu patrimônio. Mas, ainda com toda força intelectual que faz do ser humano o Homem par excellence – o sujeito de sua própria fala -, Sófocles foi a juízo e fez ele mesmo sua defesa. Pedira aos juízes lhe permitissem fazer a leitura do Édipo em Colono, desse modo, facultando-lhes fundamento para o veredito com que, meritoriamente, a Justiça declarar-lhe-ia são da mente! Lendo para eles essa peça que acabara de escrever, perguntou-lhes se a considerava obra de um débil! E, assim, conquistou o direito que lhe garantia autonomia e dignidade.
Com essa introdução, quero apontar, desde já, o primeiro tema do mais recente romance do escritor gaúcho, Waldomiro Manfroi – Vestígios. Veremos que o personagem, Eduardo, como costuma acontecer entre os jovens, considera Mário, o velho pai, demente - pelo olhar vago que trazia, pelas histórias abusivamente repetidas que contava e porque, devido à memória falha, ao vê-lo, não o reconhecia como filho; enfim, por admitir, impaciente, a grosso modo, este ponto de vista: o velho é débil. Claro que essa interpretação responde, de imediato, à narrativa linear da fábula, pois sabemos que é pela trama romanesca que, com justo discernimento, podemos apreender a razão que, deveras, o levara a isso.
Ora, Heidegger, na sua leitura acerca do ser e do tempo, faz-nos ver que a linguagem é o habitat do homem, a morada do homem no mundo. Por conseguinte, creio que, enquanto houver laivos – vestígios-, dos fatos vividos conservados pela memória, aí há fala, há desejo! Há aí um homem na terra,posto em existência!
Dois planos narrativos são trazidos nesse romance: o que narra as peripécias de Humberto, transmitidas pelas histórias que Mário, o irmão, conta, e o que discorre sobre a empreitada da nora deste, Flávia, na investigação da verdade nelas contida. Dois personagens, portanto, protagonizam a narrativa: Mário, a quem é imputada a injuriosa velhice, fato partilhado com Sófocles, e ela, cujo sentimento podemos avaliar com atento exame da citação abaixo.
Nessa leitura hermenêutica, preliminar, transcrevo aqui, para análise dessa personagem feminina, esta citação do livro de Cícero, cujo tema é a amizade. Talvez nos ajude a melhor compreender o sentimento manifestado por ela, mulher de Eduardo, experimentado na relação familiar. Diz o sábio filósofo: (...) será por fraqueza e indigência que se busca a amizade, cada um visando por sua vez, através da reciprocidade dos serviços, receber do outro e devolver-lhe esta ou aquela coisa que não pode obter por seus próprios meios, ou seria isto apenas uma de suas manifestações, a amizade tendo principalmente uma outra origem, mais interessante e mais bela, escondida na própria natureza? (p.91)
Esses dois temas tão caros ao filósofo Cícero ocuparam, igualmente, o pensamento do escritor e médico, acadêmico Waldomiro Manfroi. Fio condutor das tensas relações entre seus personagens, a velhice e a amizade tecem a trama romanesca. Vestígios apresenta estilo claro, direto, com vívida voz narrativa manifestando o tom incisivo do libelo.
Assim é a fábula:
Mário, já velho, residente de um asilo, é pai de Eduardo, casado com Flávia, pais de dois filhos, Marcelo e Fabrício. Aí adquirira um hábito: olhava vagamente para longe, enquanto, sentado num banco, costumava falar dirigindo-se ao companheiro, sempre mudo. Qual Sherezade, contava histórias inacabadas, provocando voraz curiosidade à nora e tédio ao filho. Todos os acontecimentos que narrava atribuía-os ao irmão, Humberto. Resumiam-se em dois motivos centrais: a odisseia desse personagem no mundo dos negócios e do exército, com participação na Segunda Guerra Mundial, e suas aventuras amorosas, que não foram poucas, levando-o, constantemente, ao abandono da mulher e da pródiga prole. Sumido, vezes dado por morto, ou de regresso ao Lar, com frequência largava a todos, alegando a ocupação com os negócios, até que saiu de casa de vez. No asilo, Mário não demonstrava ter memória viva para os fatos presentes, o que o levava a dizer a Eduardo que não tinha filhos. Alheio ao que se passava ao redor, não interagia com a nora nas visitas frequentes que lhe fazia. Flávia era ouvinte compulsiva; intrigada, desejava, sobretudo, ouvir o final das histórias, nunca revelado pelo sogro, apesar de suas insistentes súplicas. Alegava que, ouvi-las, era importante, assim ele estaria assegurando a transmissão desse legado histórico familiar. Mas o final das histórias só seria revelado mais tarde. Surpreendentemente, já próximo aos noventa anos, nessa idade em que a libido parece serenar, ele é flagrado morto, na cama com uma mulher. Sem mulher, acreditava que a vida não tinha sentido em qualquer idade. Mário, zelosamente, havia instruído o pessoal responsável pela administração do asilo que seus pertences só fossem entregues à família após sua morte. Nessa ocasião, portanto, ser-lhe-ia revelado o segredo que aquelas histórias mantinham em crescente suspense: não era Humberto, mas ele próprio o seu personagem! Logo depois que toma conhecimento desse fato, Flávia abandona o marido. Longas foram as discussões mantidas com ele, a respeito das suas visitas ao sogro, mostrando-se sempre muito irritada, assaz intolerante com a conduta de afastamento dele do pai, com a sua descrença quanto à veracidade das histórias que o sogro lhes contava.
Agora a trama, tecida em torno da traição amorosa:
Flávia, ouvindo sempre atentamente ao sogro, o que, de fato, desejava era confirmar a suposição que a atormentava no casamento: teria ele transmitido ao filho o legado da luxúria? Por esse meio, ansiava provar a suposta traição do marido, que a fazia sofrer; nessa sôfrega escuta, podia advir-lhe certeza, caso comprovasse que puxara ao pai. Ademais, esta não lhe era incumbência tão difícil, mais difícil fora cuidar da mãe doente. Logo, o sentimento que a regia não era o da grande Phylia dos gregos antigos. Ela não seguia este preceito que a rege, está em Cícero: Em amizade será, portanto, uma lei nada pedir de vergonhoso e não ceder a nenhuma súplica.
O filho, Eduardo, não reconhecido pela instância paterna, antecipa-lhe o tempo de vida, qual pleitearam os filhos de Sófocles, o tempo de vida do homem na terra. Tomando-o, sumariamente, por um débil, ignora-o, em vida. Não ouvi-lo é descrer totalmente de sua digna e devida humanidade. Estava assim inconscientemente determinada a trágica retaliação pelo abandono sofrido.
E Humberto? Não seria esse personagem a ficção que Mário construíra para defender-se da angústia? Personagem fictício, Humberto tornar-se-ia seu porta-voz! Quem sabe, talvez a sabedoria da vida, em fase avançada, houvesse lhe facultado o uso de um dos conhecidos mecanismos de defesa inconscientes, para protegê-lo do duro facear com a Verdade que o punha - vis-à-vis-, diante daquele filho abandonado! Talvez esses versos do Agamêmnon de Ésquilo, na tradução de Jaa Torrano (vv.179-81, Ed. Iluminuras) possa esclarecer-nos a atitude de Mário nessa fase outonal de seus dias: A dor que se lembra da chaga/ sangra insone ante o coração/e a contragosto vem a prudência. Recorrera, assim, talvez, à mentira, um modo singular de contar a Verdade. Aliás, seus netos, Marcelo e Fabrício, certamente porque sem ressentimentos, tinham um modo semelhante de compreender tudo isso. Referindo-se à necessidade de seu velho avô confabular, arrazoavam: Como tinha visto muita coisa na sua longa vida, talvez estivesse sendo irônico ou excêntrico. Só os sábios têm direito a usar da ironia para sobreviver. Ele tem oitenta e oito anos. Só isso é suficiente. Se o que contava era verdade ou não, que importância fazia? (p.100).
Dulcinea Santos, Recife, 31/10/2013