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O brasileiro nas obras de Camilo e de Eça - Moacyr Flores

26 de novembro de 2014


Moacyr Flores¹
 
Em Portugal denomina-se popularmente de “brasileiro” ao português que residiu no Brasil e regressou rico à sua aldeia. Aquele que retorna pobre é chamado de “mão-furada.
O Brasil, desde o início de sua colonização, sempre foi encarado como terra de fartura, onde é fácil enriquecer.
A partir do século XVBI formou-se o tipo “brasileiro” que a duras penas juntou seu capital ou através do descalabro da administração roubou do erário público para, em Portugal, comprar propriedades, posição social e política. Este tipo serve de caricatura para os romances e peças teatrais portuguesas, aparecendo no cancioneiro popular como tipo ideal, cheio de dinheiro que salva os parentes das penhoras e aperturas financeiras.
No Brasil, o mesmo tipo é personagem das anedotas de português, onde sua burrice e pouca visão são a tônica hilariante.
Humilhado e ridicularizado, aqui com o epíteto de galego ou português e na sua terra com o de “brasileiro”, o tipo mostrou que era inteligente porque enriqueceu, com o trabalho ou com a esperteza, sem que tivesse descoberto a árvore das patacas.
Guilhermino César2 tratou concisamente da formação do tipo “brasileiro” até o século XVII. Pretendemos percorrer o mesmo caminho, apoiado em outras fontes, a fim de analisar o tipo explorado nos romances de Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós.
1. A formação do tipo
Portugal, liderado por uma classe mercantil, aliada aos governantes, lança-se ao caminho do ouro da Mina, conquistando Ceuta, percorrendo a costa africana, fundando feitorias e entrepostos de escravos, na tentativa de se livrar do domínio comercial de Gênova e de Veneza. Finalmente Vasco da Gama chega a Calicut, transformando o oceano Índico, pela expulsão dos árabes, num oceano português, deslocando o comércio do mar Mediterrâneo para o Atlântico Sul. Começou uma nova era da História da civilização cristã ocidental.
Pedro Álvares Cabral, em sua viagem para as Índias, tocou no Brasil, enviando Gaspar de Lemos a Portugal com carta a El-Rei Dom Manuel, na qual descreve a terra, com a preocupação de suas riquezas:
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro, nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os da Entre-Douro e Minho, porque nesse tempo dagora assim os achávamos como os de lá. As águas são muitas: infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo.3 Interessados na riqueza imediata das Índias Orientais, que lhes forneciam lucros fabulosos com as especiarias, os lusos instalaram feitorias na Terra de Santa Cruz, a fim de garantir sua posse.
Os degredados, encarregados das feitorias, e mais os náufragos entraram em contato com os ameríndios, utilizando-os na exploração do pau-brasil, aprendendo sua língua e possuindo suas mulheres. Os franceses fundaram entrelopos, conquistaram a amizade dos selvícolas, conforme nos conta Hans Staden, ponde em perigo o domínio português no Brasil.4
Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, narra que o bispo de Leiria, por zombaria ou talvez por conhecer a realidade, pôs na sentença de um degredado:
Vá degredado por três anos para o Brasil, donde tornará rico e honrado.
Assim aconteceu. O homem casou com uma mulher sem dote e veio degredado para o Brasil. Granjearam a vida de tal maneira que em três anos adquiriram dois ou três mil cruzados com que retornaram à sua terra, acompanhados do capitão-mor de Rio Grande do Norte, João Rodrigues Colaço e de sua mulher, Dona Beatriz de Menezes. O degredado passeava ombro a ombro com o capitão-mor, assentando-se sua mulher no mesmo estrado com a fidalga, pois se tornaram comadres. Cumpriu-se em tudo a sentença do bispo de Leiria.5
A partir de 1530, ondas de degredados, criminosos com penas comutadas, fidalgos endividados, militares sedentos de glórias, missionários fervorosos, pequenos comerciantes e pacatos lavradores chegaram ao Brasil em busca do enriquecimento, espalhando-se pela orla costeira, dividida em sesmarias e datas.
Gandavo narra como esses colonos iniciaram suas vidas no Brasil:
A primeira cousa que pretendem adquirir são escravos para nelas fazem suas fazendas e se uma pessoa chega na terra alcançar dois pares ou meia dúzia deles (ainda que outra cousa não tenha de seu) logo tem remédio para poder honradamente sustentar sua família: porque um lhe pesca e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e granjeiam suas roças e desta maneira não fazem os homens despesa em mantimentos com seus escravos, nem com suas pessoas.6
A Inquisição, iniciada em Portugal em 1536, transformou a Zona da Mata do Nordeste Brasileiro em nova Canaã para os cristãos novos. O engenho de açúcar requeria um grande capital para sua instalação e só receberia uma sesmaria quem possuísse grande número de escravos e bens. A sociedade aristocrática e fechada do engenho era compatível com a mentalidade judaica, que na sua sesmaria, distante do rei e dos capitães donatários, transformava-se na principal autoridade da região, colocados como estavam os senhores de engenho no ápice da pirâmide social.
O povoamento do Sul do Brasil processou-se de maneira muito diferente das demais capitanias, por causa das lutas constantes com os espanhóis e seus descendentes. Em 1750 intensifica a colonização dirigida com casais açorianos para vários trechos do litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Abandonando suas terras, forçados pela superpopulação, estes colonos não tinham pendores para a agricultura, que consideravam como atividade de escravos. Reunidos em grupos de 60 casais, com propriedades de um quarto de légua em quadro, equivalente a 225 hectares, exploraram inicialmente a agricultura, mas o calote oficial que acompanhava a requisição de grãos para a tropa, a falta de boas sementes e principalmente a distribuição de sesmaria, que permitia a pecuária com menos riscos e capital, fizeram com que os açorianos abandonassem a agricultura. Os ilhéus também receberam lotes urbanos, formando vilas em torno de uma praça com igreja, de onde partiam as ruas em forma de tabuleiro de xadrez.
As vacarias dos Pinhais e do Mar, com gado abandonado pelos jesuítas da região missioneira, forneceram animais para povoarem as estâncias. Surgiu uma sociedade de pastores e guerreiros, que empurrou a fronteira, conquistando o território espanhol. Os açorianos, com a facilidade de receber sesmaria na linha de fronteira, deixaram a agricultura e tornaram-se pecuaristas, classe mais aristocrática do que a dos agricultores.
No século XVIII a população igualava e já começava a superar a da Metrópole. A matéria-prima e as riquezas saíam do Brasil para sustentar os lusos que permaneciam do outro lado do Atlântico. Aqui chegavam os português em busca de honrarias e riquezas.
Era o Brasil para sua metrópole como um cofre de fortunas ou uma vaca de leite. Daí surgiu semente de um ressentimento fundo e um descontentamento crescente. Uma concessão se impunha: igualdade absoluta dos portugueses das duas bandas do Atlântico. O Brasil não poderia mais continuar a ser mero sustentáculo de uma metrópole decadente.7
A independência das colônias inglesas na América do Norte abalou com as estruturas anacrônicas das monarquias européias. A Revolução Francesa trouxe o nivelamento das classes e a propagação das idéias dos enciclopedistas. Napoleão Bonaparte retalhou e sacudiu a Europa. Esses acontecimentos provocaram grandes mudanças econômicas, sociais e políticas no mundo.
A chegada da Corte portuguesa ao Brasil acelerou o processo de urbanização da classe dos senhores rurais. As festas, o teatro, os passeios as reuniões em salões impuseram formas de convívio. As ruas fervilhavam de pessoas e a mulher começou a abandonar a segregação em que vivia no período colonial, participando nas diferentes atividades sociais.
Dom João, em 25.11.1808, decretou que os estrangeiros teriam direito à propriedade territorial. Os primeiros imigrantes destinados inicialmente a Buenos Aires, foram levados para Nova Friburgo em 1819.
Após a independência o acirrado nacionalismo brasileiro contribuiu para diminuir a imigração portuguesa.
Com o crescimento do mercado interno e das pressões externas em função do café, havia ofertas de emprego em atividades direta ou indiretamente ligadas à cafeicultura.
No século XIX o “trabalho mental” era mais um ornamento e não um instrumento de trabalho e de ação. O brasileiro não queria aprender um ofício porque considerava as profissões mecânicas, isto é, aquelas que utilizavam as mãos, como próprias da classe servil. Até aos vinte e um anos vivia o rapaz à custa dos pais, desejando e esperando por um emprego público, onde se trabalhava pouco, mas tinha ordenado.8
A carência de mão-de-obra nos setores de produção, comércio e serviços encontrou no imigrante europeu a solução imediata.
Até 1883 a política era de acolher imigrantes para as colônias de povoamento com a finalidade de preencher os vazios demográficos. Tal política também teve efeitos negativos pela baixa qualidade dos imigrantes, que serviram de válvula de escape para as tensões sociais européias. Os Estados Unidos da América do Norte criaram normas e restrições à imigração, selecionando os indivíduos que entraram no país.
A partir de 1884 aumentou a necessidade de mão-de-obra com a expansão da cafeicultura a oeste de Campinas. De 1884 a 1890 entrou contingente pouco menor que nos últimos 64 anos. Durante o período de 1820 a 1900 o Brasil recebeu imigrantes nas seguintes proporções, conforme as nacionalidades: portugueses 32,5%, italianos 32,2%, espanhóis 19,3%. É digno de nota que os portugueses colonizaram o Brasil e, após a independência, predominaram nas correntes imigratórias.9
 
2. O tipo “brasileiro” em Portugal
Desde o século XVI formou-se em Portugal a imagem de um Brasil fabuloso, onde as pessoas enriqueciam da noite para o dia.
O homem pobre sonhava com a fortuna no Brasil, pois em Portugal o atraso econômico, a má administração as revoluções as tradições e os impostos aumentaram a miséria do povo.
Premido pela dívida, Januário, o filho perdulário, elabora o plano de enriquecer no Brasil:
Nesta extremidade, Januário, antes de vender o cavalo e retirar-se para o Brasil, onde tinha um tio materno, tentou eleger entre suas namoradas uma que lhe merecesse com seu dote e formosura o sacrifício do casamento.10
Os parentes domiciliados no Brasil facilitavam a vinda de novos imigrantes, acolhendo-os e dando-lhes trabalho. O dote da moça e os recursos econômicos do pretendente eram fatores importantes no arreglo do casamento. Acompanhando a história narrada por Camilo Castelo Branco, encontramos Januário recusado pela mãe da moça:
Finalmente resolveu vender o cavalo e fugir para o Rio de Janeiro.11
Fugia-se das dívidas e da miséria em Portugal, em busca da riqueza no Brasil.
O pai tinha morrido deixando ao outro irmão. Estava casado (o Torquato) e tinha dois filhos. Queria tentar a fortuna ao Brasil, trabalhar em mangas de camisa se fosse necessário.12
O filho mais velho herdava a terra, aos demais restava trabalhar em arrendamento ou emigrar.
Nós devíamos ir todos para o Brasil – lembrou Torquato, que tinha meditado num recolhimento extraordinário.13
Os que ficavam em Portugal contavam com os parentes de além-mar para saldar suas dívidas e hipotecas. O parente rico transformava-se na esperança do campônio empobrecido:
Marta era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um irmão rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no espaço de vinte anos, lhe mandara três moedas, com os seguintes encargos: à mãe 6$000 réis fortes, às almas do purgatório, de Negrelos, 3$000 réis também fortes, que lhos prometera quando embarcou, e o resto para ela – 5$400 réis, dizia é que o maroto podre de rico me mandou em vinte anos.14
Marta escreveu sua primeira carta ao tio Feliciano, que residia em Pernambuco:
Pedia-lhe a sua bênção e duas moedas de ouro para umas arrecadas. Era o pai que lhe ditava a carta, cheia de lástimas mendigas, mentirosas, historietas velhacas de penhoras, as grandes décimas, a ferrugem das oliveiras, o bicho da batata, o gorgulho que pegara no milho, muitas alicantinas.
- Que era a ver se o ladrão mandava alguma coisa, dizia ele, pondo cuspo no obréia vermelha para fechar a carta.15
O “brasileiro” ao retornar a Portugal, investia sua fortuna, adquirida no Brasil com suor e sacrifícios, em propriedades das mais variadas:
Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis para as arrecadas da sobrinha e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, enfim, descansar de vez – que já tinha para os feijões. Recomendava-lhe que fosse deitando o lho a uma ou duas quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda houvesse conventos à venda, os fosse apalavrando até ele chegar.16
Os solares de fidalgos arruinados passavam aos novos ricos, que depois tratavam de arranjar fidalguia.
O regedor tinha comprado duas juntas de bois para o caseiro da Retorta, uma quinta solarenga torreada, com o brasão dos Brandões, que o brasileiro comprar dum fidalgo de Afife.17
O recém chegado procurava embasbacar seus conterrâneos com a riqueza que possuía, transformava a quinta, reformava e decorava a casa, gastando muito dinheiro e usando mau gosto.
Luisa ouvira dizer que a quinta pertencia agora um brasileiro; sobre a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fora reconstruída e mobiliada pelo Gardé.18
Nem sempre o retorno à terra natal realizava o sonho acalentado durante o trabalho penoso no Brasil. Em Portugal havia menos liberdade e as revoluções criavam bandos de marginais que tiravam o descanso de homens honestos.
Pouco depois chegava o tio Feliciano da quinta da Retorta, onde residia assistindo às obras. Vinha aterrado. Disse ao Osório que já estava arrependido de comprar a quinta, que Portugal era uma ladroeira e um bando de facínoras; que se ia embora muito breve.19
Os invejosos de tantos bens deleitavam-se com as caricaturas do tipo, que os romancistas e dramaturgos exageravam a fim de provocar o rio através do ridículo:
Feliciano tinha quarenta e sete anos. Não se parecia com a maioria dos nossos patrícios que regressam do Brasil com uma opulência de formas almofadadas de carnes socadas. Era magro esqueleticamente, um organismo de peta sugado pelos vampiros do spleen. Dizia, porém, que tinha fibras de aço e nunca tomara remédios de botica. Muito míope, usava de monóculo redondo num aro de búfalo barato. Como era econômico até a miséria, dizia-se em Pernambuco que o Feliciano usava um vidro só para não comprar dois; e que, se pudesse, venderia um olho como coisa inútil. Com a economia e o trabalho bem propiciado em trinta anos arredondara trezentos contos. Chegara aos quarenta e sete, ao outono da vida, sem ter amado. Nunca se conspurcara nos latíbulos da Vênus vagabunda. A sua virgindade era admirada e notória; depunham a favor dela os seus caixeiros, os feitores e o que mais é – as suas escravas. Os seus patrícios devassos chamavam-lhe o Feliciano Pudicício. Ele não se envergonhava de confessar a sua castidade ao pároco de Caldelas. Tinha vivido como um dessexuado – que trabalhava muito nos seus armazéns, que dormia poucas horas, e não dava folga ao corpo nem pega aos vícios. Originalíssimo. Que lhe saíram casamentos ricos; mas que ele para ser rico não tinha precisão de mulher; que vira algumas meninas pobres a namorá-lo; mas que desconfiara que lhe namorassem o seu dinheiro. Não tinha queda para o sexo que ele dizia seixo. Numa palavra, estava virgem.20
Tal tipo quando retornava a Portugal conservava a maneira de viver que lhe dera fortuna no Brasil. A sovinice e a riqueza andam de mãos dadas. O medo de perder o que ganhou transforma o homem num mísero que acumula terras e mais terras, continuando a viver de maneira pobre.
Feliciano é o homem mais rico destes arredores e vive como os cabaneiros, de caldo e pão de milho. Ele quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que vem do Brasil todos os anos, vai a pé, e mete ao bolso umas côdeas de broa e quatro maçãs para não ir à estalagem.21
Camilo Castelo Branco também pintou o “brasileiro” com tintas lisonjeiras:
Na extrema desses campos estava um magnífico edifício recentemente construído, e nessa noite havia aí uma festa. O proprietário dele era um brasileiro que festejava aos anos de sua velha mãe, e reunira parentes e amigos de algumas léguas em circunferência.
Entrou Ângela na casa do homem rico.
[....] – Disseram-me que casara naquele dia o senhor João Antônio Francisco, brasileiro muito rico, com a senhora Angelazinha [...] O brasileiro com bonacheirona franqueza convidou-me para a janta.22
O Brasil era uma terra exótica, distante e desconhecida. Havia várias suposições sobre a vida no além-mar, principalmente as mulheres, que não trabalhavam na sociedade patriarcal:
Perdia-se em suposições de outros destino, que se desenrolavam, como panos de teatro; via-se o Brasil entre coqueiros, embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios.23
Aqueles que fugiam de Portugal com medo dos credores e depois retornavam ricos alimentavam a imaginação fértil do povo, que contava e recontava as lendas de riquezas fabulosas:
Na comarca não se falava doutra coisa. Dizia-se até que o brasileiro mandara abrir numa sala duas cisternas onde despejava o dinheiro aos alqueires. Os mais abastados lavradores esquadrinhavam oportunidade de oferecerem suas filhas ao parente do barqueiro. Os morgados circunvizinhos esperavam que ele se aposentasse na casa nova para irem visitar e saberem com que juro emprestaria o seu dinheiro sobre vínculos três vezes hipotecados.24
Procurando se vingar dos tempos das vacas magras, o “brasileiro” utiliza todos os meios para ostentar sua riqueza:
Um pouco sobrecarregado nas jóias e nos bordados das meias. De resto é moda no Brasil, creio.25
Os anos passados no Brasil modificam o comportamento e também a maneira de falar. A personagem Luísa caminha à noite pela Rua de São Roque quando é abordada por homem de chapéu de palha e olhos repolhudos:
De sob o chapéu de palha saiu uma voz adocicada e brasileira, dizendo-lhe junto ao pescoço:
- Aonde mora, ó menina?26
O falar brasileiro, menos áspero e pronunciando as vogais numa cadência tropical é diferente do português:
Sou brasileira. Pela fala me terá já conhecido.
– Sim eu estava notando no falar de V. Exª uma graça indizível.27
As mulheres modificaram a vida de Calisto Eloi, morgado da Agra de Freimas, mas foi uma brasileira, nascida no Brasil, que com sua graça e beleza transformou o anjo em um homem.
Eça de Queiroz traça rapidamente a caricatura feita pelos portugueses de seus patrícios que enriqueceram no Brasil. Esta caricatura popular, criada pelo riso público, espalhou-se no teatro, no romance, nas piadas e canções.
Ele é o pai achinelado e ciumento dos romances românticos; o gordalhufo amoroso das comédias salgadas; o figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos; o maridão de tamancos, sempre traído, de toda a boa anedota.28
Eça considera esta imagem como uma injustiça porque os portugueses não têm o direito de rir dos “brasileiros”. Compara os dois com o crescimento da bananeira em Portugal e no Brasil, atribuindo ao clima a exuberância da planta no solo brasileiro. Critica os portugueses que são as sementes de seus patrícios que rebentaram em fruto.
Eis o formidável princípio! O brasileiro é o português desabrochado.
Causticamente Eça conclui seu artigo:
Quando vês o brasileiro chegar dos Brasis estalas em pilhérias – se ele nunca de lá voltasse com seu bom dinheiro morrias de fome.29
O tipo popular das pilhérias em Portugal é o “brasileiro”, português que enriqueceu no Brasil e retornou à sua terra natal, contribuindo com seu dinheiro para auxiliar parente, gerando trabalho nas quintas que comprou.
O português que chega ao Brasil, com a finalidade enriquecer, também é alvo de anedotas. Assim, o mesmo tipo, “brasileiro” em Portugal e português no Brasil, contribuiu com seu trabalho para irmanar ainda mais os dois povos.
NOTAS
 
1 Artigo publicado na Revista Veritas, Porto Alegre, PUCRS, 1980, ano 25, nº 100, p. 464-473.
 
2 CÉSAR, Guilhermino. A idealização de um tipo: o “brasileiro”. Correio do Povo. Porto Alegre, 22 nov. 1972. Caderno de Sábado, p. 2.
 
3 CAMINHA, Pero Vaz. Carta a El-Rei D. Manuel. São Paulo, Dominus, 1963, p. 67.
 
4 STADEN, Hans. Suas viagens e cativeiro entre os índios do Brasil. São Paulo: Nacional, 1945, p. 126.
 
5 SALVADOR, frei Vicente do Salvador. História do Brasil. São Paulo, Melhoramentos/Brasília, MEC, 1975, p. 286.
 
6 GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província de Santa Cruz. São Paulo: Obelisco, 1964, p. 34.
 
7 CALÓGERAS, Pandiá. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1957, p. 74
 
8 O ARTILHEIRO, jornal de Porto Alegre, nº 27, de 20.1.1838, p. 1 e 2.
 
9 AZEVEDO, Aroldo de. Brasil, terra e homem. A vida humana. São Paulo: Nacional, 1970, vol. 2, p. 75-78.
 
10 CASTELO BRANCO, Camilo. Doze casamentos felizes. Rio de Janeiro: Simões, 1954, p. 110.
 
11 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. 1954, p. 111.
 
12 CASTELO BRANCO, Camilo. A brasileira de Prazins. Porto: Lello & Irmão, 1943, p. 110.
 
13 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 111.
 
14 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 92.
 
15 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 15.
 
16 CASTELO BRANCO, Camilo, Op. cit. p. 21.
 
17 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 166.
 
18 EÇA DE QUEIROZ. O primo Basílio. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, sem data, p. 63.
 
19 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 169.
 
20 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 148-59.
 
21 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 9.
 
22 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. p. 1954, p. 73-74.
 
23 EÇA DE QUEIROZ. Op. cit. p. 21.
 
24 CASTELO BRANCO, Camilo. Op. cit. 1954, p. 133.
 
25 EÇA DE QUEIROZ. Op. cit. p. 305
 
26 EÇA DE QUEIROZ. Op. cit. p. 237.
 
27 CASTELO BRANCO, Camilo. A queda de um anjo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, sem data, p. 132.
 
28 EÇA DE QUEIROZ. As farpas. Rio de Janeiro. Edições de Ouro, sem data, p. 139-144.
 
29 EÇA DE QUEIROZ. Op. cit. p. 139-144.

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 15

Múcio Scevola Lopes Teixeira

(por Anselmo F. Amaral)

A literatura sul-rio-grandense tomou forma própria, com conteúdo regionalista, e expandiu-se a partir da fundação da Sociedade Partenon Literário, em 1868. Iniciativa de um grupo de jovens liderados por Apolinário Porto Alegre. Ali figuraram nomes como: Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Fernando Osório (pai), Homero Batista, Lobo da Costa, Revocata dos Passos Ligueroa de Melo e o próprio Caldre e Fião.

Em meio àquela plêiade de escritores, artistas e homens de ciência apareceu um jovem poeta com, apenas, treze anos...

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