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Discurso de Posse na Cadeira 29 - Rafael Bán Jacobsen (12/11/2013)

12 de novembro de 2013


A Palavra e o Tempo
 
Discurso de posse de Rafael Bán Jacobsen na Academia Rio-Grandense de Letras
 
 
Excelentíssimo Senhor Prof. Sérgio Augusto Pereira de Borja
Presidente da Academia Rio-Grandense de Letras
Digníssimos Senhores e Senhoras Acadêmicos
Excelentíssimas Autoridades presentes e representadas
Veneranda Assembleia de admiradores da palavra
 
1ª Parte – Ascensão e tributo
 
Omnia idem pulvis– tudo é o mesmo pó. O antigo ditado latino, em sua afirmação absoluta, nega, em última instância, qualquer distinção ou perenidade. No entanto, aqui estou eu, um escritor que se enxerga ainda a ensaiar os primeiros passos, sendo galardoado e investido de imortalidade na Academia Rio-Grandense de Letras, esta casa em que convivem passado e futuro, memória e projeto. Mas como cheguei até aqui?
Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, proferido em 1956, Álvaro Lins [1] desafogava:
 
Não gosto de ver o espetáculo, que me parece, ao mesmo tempo, um pouco penoso e muito ridículo, de jovens de vinte anos ou de jovens desde os vinte anos – que não saem das portas, das salas, dos corredores da Academia, candidatando-se em séries aos seus prêmios como em coleções e suspirando em cálculos por uma de suas cadeiras. Espalham-se pelos salões, esgueiram-se pelos cantos, insinuam-se às quintas-feiras na mesa do chá. E espera cada um a sua vez de candidato e de eleito – para quando?
 
Devo dizer que minha aproximação à Academia Rio-Grandense de Letras não aconteceu de forma calculada, artificializada por premeditações; foi, ao contrário, uma série de acenos mútuos que se tornaram cada vez mais frequentes à medida que, ano após ano, nela ingressavam intelectuais cuja obra e cujo estímulo pessoal tanto pesaram em minha formação de escriba.
Mesmo assim, é compreensível que alguém considere precoce o meu ingresso em uma instituição que, há mais de cem anos, coroa a trajetória de pessoas que legaram à literatura gaúcha obras nascidas de uma vida inteira de entrega aos mistérios da palavra. Frente a isso, lembro que Machado de Assis, em 1897, na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, descreveu a instituição como tendo “alma nova, naturalmente ambiciosa” e “iniciada por moços, aceita e completada por moços”. Com efeito, entre seus primeiros membros, citando uns poucos exemplos, encontramos Graça Aranha, com vinte e nove anos, Medeiros e Albuquerque, com trinta, e Rodrigo Octavio, com trinta e um. Na Academia Maior de nosso Estado, não foi diferente. Em novembro de 1901, reuniram-se no Teatro São Pedro alguns literatos da época para tratar da fundação da Academia Rio-Grandense de Letras, evento que veio a se concretizar em 1º de dezembro desse mesmo ano, em sessão solene realizada no Clube do Comércio. A Academia se constituía, então, de vinte e cinco cadeiras. Entre os primeiros ocupantes, estiveram Alcides Maia, com vinte e três anos, Mário Totta, com vinte e sete, e o próprio José Carlos de Souza Lobo, de vinte e seis anos, que ocupava a Cadeira 5 e que, em 1944, após a reestruturação pela qual a entidade passou, seria escolhido Patrono da Cadeira 29, a que hoje venho a ocupar. [2]    
Então, por um lado, meu ingresso neste sodalício é – sim – fruto de uma postura arrojada da Academia, que busca cada vez mais espelhar o panorama das letras gaúchas, paisagem de ficções e ideias em que é inegável a contribuição de uma pujante safra de jovens autores; por outro lado, o acolhimento de meu nome entre os imortais pode ser visto como um retorno às origens, um gesto da mais pura tradição, ao reviver aquela Academia “aceita e completada por moços” de que falava Machado.
Existe, ainda, outro fato que confere circunspecção de ordem antiga ao evento que hoje celebramos. Se nos deixarmos levar ao passado clássico, à origem de todas as Academias, chegaremos a um bosque sagrado de oliveiras dedicadas a Atena e, ali, contemplaremos os umbrais da Academia de Platão, encimados pela advertência ΑΓΕΩΜΕΤΡΗΤΟΣ ΜΗΔΕΙΣ ΕΙΣΙΤΩ, ou seja, “quem não é geômetra não entre”. [3] Da minha formação nas ciências exatas, trago, geminado ao espírito de amante das letras, o espírito do físico, do matemático, do geômetra – o mesmo espírito que se exigia de quem desejasse conviver e aprender com os grandes filósofos naquela legendária escola.
De fato, é com desejo de conviver e aprender com os Senhores Acadêmicos que chego até aqui, sabedor da honraria que me foi concedida, mas preservando intocada a singeleza de quem, embora ouse ensinar, nasceu para ser discípulo.
Nesse momento de alegria e reverência, de revelações e juramentos, é preciso expressar gratidão àqueles que, estando ou não conscientes disso, me trouxeram até aqui em seus ombros e em seus braços.
Agradeço ao meu caro Paraninfo, Dr. José Moreira da Silva, que me instou a apresentar minha candidatura e que, bem sei, defendeu-a com verdadeira devoção; aos membros da comissão de crítica, a qual, com seu parecer favorável, habilitou-me para concorrer à vaga que hoje venho a ocupar; e ainda aos acadêmicos que, por fim, em sessão secreta, concederam-me seus votos, gesto de confiança que retribuirei com retidão e trabalho, dentro e fora da Academia, sempre buscando a essência através das palavras e fazendo valer o lema da instituição: vitam impendere vero, consagrar a vida à verdade.
Expresso minha dívida com todos aqueles que, em algum momento, leram um texto meu e fizeram-me saber dos sentimentos que experimentaram ante as palavras gestadas por meus temores e minhas incertezas. Cumpre destacar o nome da Profa. Léa Masina, que me fez entender o significado do aforismo de Joseph Joubert [4]: “Para escrever bem deve haver uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida.” Nos seminários de criação literária por ela coordenados, pude conviver com outros escritores que influenciaram minha escrita de maneira decisiva – divido, com todos eles, a conquista que hoje se torna realidade para mim.
Desejo que minha alegria ao ser agora aceito na Academia Rio-Grandense de Letras possa espargir-se sobre todos os mestres que fizeram de mim o incansável curioso que sou, cada um a seu modo, nas mais diversas áreas do conhecimento e nas diferentes instituições de ensino pelas quais passei: a Escola Estadual Presidente Roosevelt, o Colégio Leonardo da Vinci e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Homenagem especial faço à minha família, que está sempre por perto: meus pais, Luís Roberto e Ana Clara; minha irmã, Adriana; meus avós, Raynoldo e Erocilda Jacobsen; minha avó, Alzira Bán; e também ao Dayvson Vieira, que já é parte da família e divide comigo uma constelação de coisas indivisíveis.
Por fim, é impossível deixar de registrar a voz que primeiro se ergueu para dizer “este menino vai ser um escritor”, vaticínio que ecoou pelas espirais do tempo e vem nos encontrar hoje, aqui, no instante sem pressa em que o peso imenso da distinção acadêmica me faz pensar que sim, sou um escritor, e preciso sê-lo cada vez mais: é a voz de minha avó Alzira Bán, carregada de incentivos e de certezas que nem mesmo eu tinha.
 
2ª Parte – O Patrono da Cadeira 29: José Carlos de Souza Lobo [5]
 
De fato, o mais comum é que o gênio de um estudioso e artífice das letras seja forjado no lar, pela convivência com os livros e por estímulo e apoio da família. Assim ocorreu comigo; assim também foi com José Carlos de Souza Lobo, Patrono da Cadeira 29 desta Academia.
José Carlos de Souza Lobo nasceu em Porto Alegre, no dia 11 de outubro de 1875, filho de Rita da Graça Lobo e José Teodoro de Souza Lobo, ambos educadores. Ele, o pai, emérito professor e membro da Sociedade Partenon Literário, foi autor de livros didáticos e fundou, em 1877, o Colégio Souza Lobo, pelo qual passaram diversas personalidades gaúchas: Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Protásio Alves, Assis Brasil, entre outros.
O jovem José Carlos de Souza Lobo estudou no Colégio Rio-Grandense de Porto Alegre. Formou-se pela Faculdade de Direito de Porto Alegre em 1904. Nessa época, foi funcionário da diretoria da Instrução Pública do Rio Grande do Sul. Sua competência como advogado era reconhecida. Por ocasião de seu panegírico, assim disse o Dr. Adroaldo Mesquita da Costa, representando a Ordem dos Advogados:
 
Na tribuna jurídica, conquistou as mais assinaladas vitórias e os mais legítimos triunfos, e época houve em que, entre nós, não se debatia uma única questão criminal de relevante importância perante os tribunais sem que fosse também solicitada a sua palavra.
 
Na política, foi inicialmente filiado ao Partido Republicano, mas, em 1907, juntou-se à dissidência que fundaria o Partido Democrático, do qual passou a ser um dos nomes mais importantes. Sua retórica era admirada, seu verbo chegou a ser descrito como “inflamado e majestoso”, e esses predicados fizeram de José Carlos de Souza Lobo um dos maiores conferencistas de sua época.
Designado pela chefia do partido para dirigir seu órgão oficial, o Correio Mercantil, Souza Lobo transferiu-se para Pelotas, de onde excursionava pelo estado para dar conta de suas múltiplas atividades políticas, jurídicas e literárias.
Nos últimos anos, de volta a Porto Alegre, dedicou-se à função de advogado da Justiça Militar e colaborador do jornal Correio do Povo, para o qual escrevia artigos de grande repercussão sob os pseudônimos de João Chrisóstomo e José Mathias. Colaborou também no Jornal do Comércio e no Jornal do Dia.
Em vida, publicou o volume de versos Meu Coração e o romance Estrychnina, este último em colaboração com Mário Totta e Paulino Azurenha. Deixou escritas e não publicadas as obras Decassílabos de Amor e Diário de Dois Loucos, sendo este Diário uma nova parceria com Mário Totta.
No final do século XIX e no início do século XX, dois veios dicotômicos se insinuavam na poesia produzida em nosso estado. Havia a forte presença de Victor Silva, natural do Rio de Janeiro, aqui chegado em 1897, que, com seus sonetos, ainda trazia influência do parnasianismo, embora a estética decadentista de Mallarmé e Verlaine se afirmasse cada vez mais entre os nossos autores, com obras tais como Casa Desmoronada (1909), de Álvaro Moreyra, As Horas Coroadas de Rosas e de Espinhos (1912), de Homero Prates, e A Divina Quimera (1916), de Eduardo Guimarães. Assim, imersos nesta cena múltipla, os versos de Souza Lobo são repletos de hibridismo: as temáticas românticas do amor não realizado, da saudade, do niilismo e da solidão, típicas do mal do século, surgem, muitas vezes, com apuro formal e pictórico característico do parnasianismo amalgamado a um subjetivismo e uma musicalidade transcendentalistas que flertam com o simbolismo. Eis o soneto Abrindo o Meu Coração:
 
Ainda me faltava esta amargura
– as minhas dores traduzir em verso, –
desejando que fique no universo
a memória de minha desventura!
 
Antes em tristes lágrimas imerso
quedasse, do que andar sempre à procura
da fragrante expressão, marmórea e pura,
que esteriotipe meu destino adverso.
 
Mas é preciso que eu cultive a mágoa,
e, tendo os olhos carregados d’água,
sob a impressão da dor que me recorta,
 
edite o coração sanguinolento
e lhe confie todo meu tormento,
toda a saudade da querida morta.
 
O pessimismo perante a existência é uma constante na lira de Souza Lobo, surgindo metaforizado como uma viagem de barco no poema Em Alto Mar:
 
A minha vida sem aquela imagem
doirando como um sol meus tristes dias,
é tristonha e monótona viagem
sobre águas revoltas e sombrias.
 
Nem o fugaz encanto da miragem
pode meus olhos ter, que entre agonias
vivendo, para mim toda paisagem
ressuma tédios e melancolias.
 
Como aborrece andar sempre embarcado,
olhando o mar sem praias e deserto
e, às vezes, doidamente revoltado...
 
Que rumo trago eu desde a partida?
Onde um porto seguro? É tudo incerto
para quem se perdeu no mar da vida.       
 
 
A primeira edição do romance Estrychnina, de 1897, trazia o subtítulo Página romântica, explicitando o carregado sentimentalismo da trama, que contrasta com certas marcas de linguagem e com uma visão de mundo naturalistas subjacentes ao texto. O enredo se concentra na paixão estigmatizada pelo preconceito e no pacto de morte entre dois amantes: a jovem Chiquita Gomes, levada pelos reveses da vida a se prostituir para sobreviver, e o tresloucadamente romântico Neco Borba, filho de uma decadente família do interior gaúcho. Entre uma cena e outra, aparecem retratos do cotidiano de Porto Alegre na virada de século, com seus usos e costumes, o linguajar de seu povo, o traçado das ruas, as festas populares, tudo recendendo a um provincianismo que se sobressaltava diante de novidades como a luz elétrica e os grandes guindastes instalados no cais do porto. No quinto capítulo, Souza Lobo, Mário Totta e Paulino Azurenha descrevem um festejo natalino celebrado no então arraial do Menino Deus, semente do bairro onde nasci e onde até hoje vivo, o mesmo que Rui Cardoso Nunes, meu antecessor na Cadeira 29, escolheu para morar. Assim os escritores pintam em palavras o coração do bairro, a antiga Praça Menino Deus e sua capela:
 
Ao fundo da praça ficava a igreja branca, muito branca, posta de encontro ao verde esbatido do monte, parecendo ao longe um pedaço de mármore incrustado numa grande tela de musgo. E era de ver-se a lindeza da capelinha, toda iluminada e enflorada, e em cujos altares, sobre as toalhas alvas e bordadas, viam-se as imagens piedosas à luz trêmula dos círios. Flores aqui e ali, pelas paredes, pelas colunas e pelos nichos, numa tal profusão, que a primavera parecia ter vindo também trazer ao Deus que acabava de nascer a oferenda das suas rosas. E ao fundo, então, o presepe, as colinas sagradas de Bethlém, a santa, com a sua casaria branca, adormecida ao luar, e os seus carneiros e os seus bois bíblicos, pastando, silenciosos e tristes. [6]          
 
José Carlos de Souza Lobo faleceu em 18 de outubro de 1935, aqui, em sua cidade berço, legando-nos, além de suas obras, o exemplo de uma vida guiada pela arte da palavra.
 
3ª Parte – O último ocupante da Cadeira 29: Rui Cardoso Nunes [7]
 
Outra vida que se fez plena e vicejou através da literatura foi a de Rui Cardoso Nunes, destacado jornalista, poeta, ensaísta e dicionarista, último ocupante da Cadeira 29 desta Academia Rio-Grandense de Letras.
Nasceu em 25 de março de 1919, na Fazenda do Chapéu, propriedade de seus pais, Jorge Cardoso de Oliveira e Maria Nunes de Oliveira, no atual município de Jaquirana, antigo distrito de São Francisco de Paula. Os idílios da terra natal para sempre acompanhariam Rui Cardoso Nunes, transparecendo em várias de suas composições poéticas, a exemplo do poema Quero:
 
Lá na minha terra,
bem longe, na serra
onde a fonte canta, há beleza tanta
que eu não sei dizer...
 
Sem lembrar a vida
já por mim vivida
na querência antiga, na querência amiga,
eu não sei viver!
 
Quero ver os campos,
ver os pirilampos,
lá na minha herdade,
matar a saudade
que sofrer me faz!
 
Quero ver a fonte
ao sopé do monte,
a cantar, sentida,
fingindo ter vida,
não viver em paz!
 
Quero ver a Lua
que no céu flutua,
co’imensa beleza,
como uma princesa
que a todos seduz!
 
Quero ver o Sol
preso no arrebol,
ao morrer do dia,
em lenta agonia,
se esvaindo em luz!
 
Quero ver, ainda,
a serrana linda,
a musa dileta,
que me fez poeta,
nobre trovador!
 
Eu quero a ternura
de sua alma pura!
quero seu sorriso
– luz do paraíso!
Quero o seu amor! [8]
 
Ainda jovem, veio para Porto Alegre, onde começou a trabalhar em jornal. Não demorou para se dedicar à poesia, dando vazão a um talento que já demonstrava quando criança. Dedicado ao tradicionalismo, participou da criação do CTG 35, na capital, e ajudou na conquista da sede atual da Academia Rio-Grandense de Letras. Aliás, deve-se lembrar que Rui Cardoso Nunes jamais foi figura sem vulto nas inúmeras instituições culturais de que tomou parte: foi atuante, por exemplo, na Estância da Poesia Crioula; na União Brasileira de Escritores, participou com tenacidade por uma década; aqui, na Academia Rio-Grandense de Letras não foi apenas ocupante de uma cadeira, pois sempre esteve presente nos atos públicos e nos trabalhos de bastidores, exercendo a função de Secretário Geral por cerca de dez anos.
Desde 1949, quando estreou com a obra Desafio, publicou quase duas dezenas de livros, destacando-se, na poesia, Alma Gaudéria (1977), Da Terra ao Infinito (1986), Apojo (1995) e Tropeiro de Sonhos (2001). Consagrou-se com o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul e com o Minidicionário Guasca, ambos escritos em parceria com seu irmão, Zeno Cardoso Nunes, que também foi membro desta Casa de Olinto de Oliveira [9], que hoje me recebe. Assim Zeno descreveu a poesia do irmão em cerimônia de homenagem aos cinquenta anos do ingresso de Rui na Academia Rio-Grandense de Letras:
 
Rui Cardoso Nunes, desde sua infância, vem cultivando os mais variados gêneros de poesia, desde a simples quadrinha galponeira até o poema de profundo conteúdo filosófico, desde os sonetos clássicos perfeitos, até as criações épicas, estuantes de vigor e de vibração cívica. Sua lira partilha da beleza das flores, da alegria dos pássaros, do vigor da vivência campeira e também da impetuosidade das lutas que ajudaram a moldar a raça de centauros do Pago Gaúcho. [10]
 
Com efeito, embora sejam muito conhecidos os poemas de temática regional compostos por Rui Cardoso Nunes, sua criação expande-se para vertentes transcendentais, metafísicas, como reverbera o soneto Um Matusalém:
 
Para mim, que carrego a primavera,
dentro d’alma, de um sonho que não morre,
todo feito de amor e de quimera,
não chega o inverno, o tempo não transcorre!
 
Em meu mundo, o ideal somente impera!
E, por isto, eu afirmo, não ocorre
de nele entrar o tempo, e, de era em era,
deixar cruzes e pó por onde corre.
 
Sou um Matusalém, um microcosmo,
um espírito eterno, a andar no Cosmo!
Mas não sei a razão de meu viver!
 
Procuro, em vão, achar, pelos espaços,
nalgum lugar, rastreando os próprios passos,
a origem misteriosa de meu ser! [11]
 
Mas eis que o tempo é, ele próprio, um mundo, o maior dos mundos, no qual todos os outros coexistem, e Rui Cardoso Nunes adentrou a inescapável imortalidade em 08 de julho de 2009. Tive a oportunidade de travar conhecimento com este homem de apurada elegância em ocasiões esparsas, mas repletas de significado: em saraus de agremiações a que ambos pertencíamos, em eventos desta Academia, ou mesmo na casualidade das ruas do bairro Menino Deus, onde abrimos muitas sendas de nossas respectivas caminhadas. Os diálogos sempre foram cordiais, pontuados pelos seus generosos sorrisos e pelos meus silêncios de quem muito pensa e escuta. E foi nesse entretecer de palavras e não-palavras que, certa vez, ele disse enxergar em mim potencial para ocupar uma cadeira na Academia Maior do nosso Estado. É provável que o Dr. Rui Cardoso Nunes tivesse mais convicção do que eu quanto a isso; porém, nenhum de nós poderia imaginar que eu seria o seu sucessor na Cadeira 29. São tais os enigmas que o tempo nos impõe – e lutamos para decifrá-los em palavras, quando, na verdade, é imperiosa a consciência de que as palavras são precárias demais para apreender o universo, embora sejam a única coisa que nós, seres humanos, temos; por isso continuamos falando, por isso continuamos escrevendo.
Rui Cardoso Nunes foi, até hoje, o único membro da Academia Rio-Grandense de Letras a permanecer cinquenta anos em sua cadeira. Que eu possa também permanecer por, pelo menos, cinco décadas neste círculo de pensadores, entre os que aqui já estão e os que virão, em luta de arma branca com as palavras, tentando fazer com que elas derramem seu sangue sobre as coisas do mundo e, enfim, entreguem seus mistérios.    
 
4ª Parte – Logos versus Cronos: A Palavra e o Tempo
 
            O mais recôndito segredo da palavra talvez seja sua essência de pedra filosofal, o esforço que representa contra a efemeridade. A palavra, ologos, é luta contra a corrosão do tempo e contra a morte. É sede por antagonizar o vazio e o indizível, é desespero para traduzir o que, no mais das vezes, esfuma-se muito além do físico, como tão bem expressou Clarice Lispector, em Água Viva:
 
Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és. [12]
 
Aqui, é de grande potência ilustrativa a milenar sabedoria hebraica. Escreveu Jorge Luis Borges: “Parece óbvio, para os judeus, que as palavras têm poder.” [13] De fato, o hebraico, em sua antiguidade, é uma daquelas línguas em que, como diria Guimarães Rosa, a palavra ainda está em certo estado de primitivismo, “naquele momento inicial em que a linguagem mal se descolou da coisa e ainda guarda com a coisa uma relação mais próxima”.
Todavia, não se restringe a essa radicalidade o poder das palavras a que alude Borges. Para o Povo do Livro, a crença na origem divina da Torá (a Lei, ou os Cinco Livros de Moisés) implica santidade e infinitude de níveis de significado, não apenas para a língua na qual foi originalmente escrito o texto, mas também para cada uma das palavras e cada uma das letras ali contidas. O fato de que as palavras são dadas por Deus confere a cada uma delas “setenta faces” a serem desvendadas por quatro níveis de leitura, conhecidos como Peshat (literal), Remez (alegórico), Derash (homilético) eSod (esotérico), reinterpretados ao longo dos séculos por “legisladores, poetas, profetas, sonhadores e visionários, pensadores e místicos, especialistashaláchicos [14] e polemistas, paytanim (compositores litúrgicos) e cantores, cabalistas e filósofos, os quais, por um lado, santificam a palavra literal infinita de Deus e, por outro, revelam a constante mudança dos seus significados ocultos” [15]. Portanto, os eruditos judeus sempre souberam que a palavra, além de sua mera função de comunicar, contém mundos e códigos, grãos de verdade e infinitude.
Tome-se o caso emblemático da palavra hebraica תיבה (teivá), que possui dois significados. O primeiro é “arca”, como a arca que Deus comandou Noé a construir, e o segundo é “palavra”, no sentido mais estrito de “palavra escrita”. Por conseguinte, a palavra pode ser vista como um receptáculo de significados, assim como a arca é receptáculo de seres e objetos. A palavra, então, é a luta contra a morte, assim como a arca de Noé era veículo de salvamento para toda a Criação. Essa ideia se manifesta de forma profunda na leitura do rabino Israel Ba’al Shem Tov para o versículo “uma janela farás para a arca” (Gênesis 6:16). Assim ele escreveu:
 
Que esta teivá possa brilhar. Porque cada letra contém mundos e almas e essência divina, que surgem e se unem entre si, e, em seguida, unem-se com outras letras para se tornarem uma palavra (teivá) para então, verdadeiramente, unirem-se na essência divina. O homem deve colocar sua alma em cada aspecto, e então todos os mundos se unem como um só e surgem criando alegria e prazer sem limites. [16]
 
O Ba’al Shem Tov, na sua interpretação da história de Noé, utiliza-se do duplo significado do vocábuloteivá para “fazer uma janela para a palavra”, ou seja, abrir as palavras para as dimensões exteriores, para os mundos insuspeitos onde estão cristalizadas as revelações. Assim, quando Deus falou a Noé “Vem, tu e tua família, para a arca” (Gênesis 7:1), quis dizer também “Vem para a palavra”, convocando o homem a se entregar para a única possibilidade de remissão frente à ameaça de um poder destruidor.   
No entanto, já alertava um profeta que, ao se criar luz, cria-se também o domínio das sombras. Se, por um lado, a palavra pode ser o elixir da vida eterna, ela também abarca um poder de corrosão – o poder deletério das palavras de que falava Yukio Mishima. Em Sol e Aço, mistura de poesia e prosa, livro de memórias e ensaio filosófico, o escritor japonês expressa sua admiração pelo “homem de ação”: samurais, soldados, príncipes mortos em batalha. Simultaneamente, Mishima discorre sobre como as palavras são capazes de prejudicar a integridade desse “homem de ação” e, para isso, invoca o próprio exemplo:
 
Quando repasso atentamente minha infância, me dou conta de que minha memória das palavras começa muito antes da minha memória da carne. Na pessoa comum, imagino, o corpo vem antes da linguagem. No meu caso, antes vieram palavras; então – pé ante pé, com toda aparência de extrema relutância, e já vestida de conceitos – veio a carne. Já estava, nem é preciso dizer, estragada pelas palavras. [17]
 
Para Mishima, eram doentias a postura reflexiva e a sensibilidade trazidas pelo contato com a realidade feito através das palavras, uma vez que tais tendências suprimiriam a coragem física, a aceitação do sofrimento e a entrega estoica do indivíduo à sua morte – características do herói trágico, o modelo de homem perfeito, um “homem de ação” pleno e natural. Nessa contraposição, a literatura surge como uma espécie de sortilégio, e assim a descreve o autor de Confissões de uma Máscara:
 
Na literatura, a morte é mantida em cheque mas, ao mesmo tempo, usada como uma força condutora; a força é empregada na construção de ficções vazias; a vida é mantida na reserva, misturada com a morte na medida exata, tratada com preservativos e esbanjada na produção de obras de arte que possuem uma horrível vida eterna. Ação é morrer com a flor; literatura é criar uma flor imortal. E uma flor imortal, evidentemente, só pode ser uma flor artificial. [18]
 
Seja como for, o reino das palavras é um reino de imortalidade – cabe pensar se tal imortalidade é uma pequena taça de ouro roubada do Infinito Criador ou se é apenas um artifício alquímico a decantar cinábrio para consolo de nossos medos. Nada impede a busca pela imortalidade – ou a busca pela palavra –, desde que haja a consciência de que é uma busca de horizonte sempre em fuga.
Conta-se que, na antiga Roma, quando um general vitorioso percorria as ruas da cidade em parada triunfal, um escravo permanecia ao seu lado, soprando-lhe ao ouvido a advertência memento mori – lembra-te de que morrerás –, para que o homenageado não se esquecesse de que era somente um homem, tão destrutível quanto os demais. Se pertence às palavras o poder de gerar a vida, é também a palavra que me sussurra ao ouvido a afirmação de seu poder deletério, é ela que me segue e murmura, memento mori, ela, a palavra, de quem somos escravos.
 
 
Porto Alegre, 12 de Novembro de 2013
[1] Álvaro de Barros Lins (Caruaru, 14 de dezembro de 1912 - Rio de Janeiro, 4 de junho de 1970) foi um advogado, jornalista, professor e crítico literário brasileiro.
[2] Diversas informações sobre a fundação e os primórdios da Academia Rio-Grandense de Letras podem ser encontradas na Revista da Academia Rio-Grandense de Letras – Edição Especial: Memórias Acadêmicas, n.9, 1989.
[3] Ageometrètos mèdeis eisitô. A referência é datada posteriormente, nos escritos de João Filopono e de Olympiodoro, neoplatônicos que viveram no século VI d. C.; e por João Tzetzes, autor bizantino do século XII (Chiliades, 8, 972). Cf. SAFFREY, Henry.Ageômetrètos mèdeis eisitô: une inscription légendaire. Revue des Études Grecques, n. 81, p. 67-87, 1968.
[4] Joseph Joubert (7 de maio de 1754 - 4 de maio de 1824) foi um escritor ensaísta francês. Conhecido pela obra Pensées (Pensamentos), publicada postumamente.
[5] Nesta seção, foram pesquisadas as seguintes fontes: MARTINS, Ari. Dicionário de Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1978; COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo: Global; NUNES, Rui Cardoso. Discurso de Posse na Academia Rio-Grandense de Letras. 
[6] SOUZA LOBO, José Carlos; TOTTA, Mário; AZURENHA, Paulino. Estrychnina. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1998, p.51.
[7] Nesta seção, foi pesquisada a seguinte fonte: BECKER, Marília Cibils. Furtiva homenagem a Rui Cardoso Nunes. Revista da Academia Rio-Grandense de Letras, n.22, 2008/2009, p.132.
[8] NUNES, Rui Cardoso. 80 Anos de Poesia – Seleção de Versos Clássicos e Gauchescos. Martins Livreiro Editor, 2009, p.84.
[9] Olímpio Olinto de Oliveira (Porto Alegre, 5 de janeiro de 1865 - Rio de Janeiro, 29 de maio de 1956) foi um médico e escritor brasileiro. Formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1887. Foi professor da Faculdade de Medicina de Porto Alegre e diretor entre 1910 e 1913. A partir de 1913, passou a viver no Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Rio-Grandense de Letras.
[10] Excerto das abas do livro 80 Anos de Poesia – Seleção de Versos Clássicos e Gauchescos, de Rui Cardoso Nunes (Martins Livreiro – Editor, 2009).
[11] NUNES, Rui Cardoso. 80 Anos de Poesia – Seleção de Versos Clássicos e Gauchescos. Martins Livreiro Editor, 2009, p.60.
[12] LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, p.34.
[13] BORGES, Jorge Luis. Arte Poética e seis conferências. Barcelona, Ed. Crítica, 2001, p.102.
[14] Especialistashaláchicos são aqueles doutos na halachá, isto é, no conjunto de leis da religião judaica, incluindo os 613 mandamentos que constam na Torá e os posteriores mandamentos rabínicos.
[15] ELIOR, Rachel. “E farás uma janela para a arca” – Língua, memória e cultura como uma ponte entre o leitor secular e a “biblioteca” judaica. Porto Alegre: Revista WebMosaica, v.3, n.2 (2011).
[16] Testamento do Rabino Israel Ba’al Shem Tov. Jerusalém, 1965, p.225.
[17] MISHIMA, Yukio. Sol e Aço. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p.8.
[18] Ibidem, p.49.

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 13

Carlos Alberto Miller

(por César Alexandre Pereira)

O patrono da cadeira n° 13 da ACADEMIA RIOGRAN-DENSE DE LETRAS nasceu em Rio Grande no dia 12 de dezembro de 1855 e faleceu na mesma cidade em 07 de Maio de 1924. Seus pais foram Joaquim Carlos Miller e Maria Bernardina de Araújo Miller. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Ocupou os cargos de Diretor Geral da Companhia Fluvial em Porto Alegre e a de Chefe dos Práticos da Barra do Rio Grande. Exerceu em Rio Grande a advocacia e o magistério e foi redator dos jornais GAZETA MERCANTIL e ECO DO SUL.

Na mesma cidade...

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