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Saudação a Franklin Marcantonio Cunha - José Eduardo Degrazia (17/07/2013)
17 de julho de 2013
FRANKLIN CUNHA, RENASCENTISTA
As ciências tocam umas às outras; as mais abstratas levam àquelas que o são menos, e o corpo das ciências cabe inteiramente nas belas-letras. É, portanto, bom que se escreva sobre todos os temas e todos os estilos. A filosofia não deve ficar isolada: ela se relaciona com tudo.
(Montesquieu)
Na apresentação do primeiro livro publicado por Franklin Cunha, Deusas, bruxas e parteiras, Solivros, Porto Alegre, 1994 – nos diz o apresentador Moacyr Scliar: “Franklin Cunha é aquilo que antigamente se chamava de um “renascentista”: homem de vasta cultura e múltiplos interesses, ele é capaz de várias formas. No caso dos médicos isto corresponde a uma bem consolidada tradição: não foram poucos os doutores que conjugaram as, na célebre expressão de C.P. Snow, “Duas culturas”, a ciência e as humanidades.”
Em 1959 o químico e romancista Charles Percy Snow, barão Snow, escreveu uma artigo que causou discussões acirradas na Inglaterra pós-guerra. Neste artigo o autor alertava para o abismo existente entre a camada culta, clássica, e acadêmica, com o conhecimento científico. E tomava posição contra a educação da era vitoriana, que ainda dominava. E estes dois mundos da cultura, aparentemente opostos, precisavam encontrar-se para melhor desenvolvimento da das capacidades humanas. Tanto os literatos deveriam conhecer mais física, quanto os cientistas deveriam ler Shakespeare.
Faço esta introdução para apresentar o novo acadêmico Franklin Marcantonio da Cunha. Pois a leitura de seus livros nos mostra que Scliar estava coberto de razão. Franklin é necessariamente um renascentista, um homem culto, que conhece e exerce a cultura letrada, aberto à ficção e à poesia, também médico estudioso da biologia, da genética, das ciências, da antropologia, da filosofia, e da história. Leitor dos mais atentos e profundos, analisa, comenta, e quando necessário toma posição nos debates que tais leituras oferecem, sempre procurando levar ao leitor o melhor que sua interpretação entendeu como mais esclarecedora do fenômeno analisado. Franklin Cunha é, assim, intelectual que consegue unir as “Duas Culturas” pensadas como opostas e problematizadas por C.P. Snow.
A Medicina – Franklin foi ginecologista e obstetra por quase quarenta anos –, por ser ciência e arte, permite que seu agente, quando inclinado a isso moralmente, e tendo as ferramentas intelectuais e teóricas necessárias, se debruce sobre os aspectos humanos da existência, que todo o dia, por sua profissão tem de observar e intervir. Esta mescla de visão teórica e prática da vida, da saúde e da doença, com a capacidade de intervir sobre os aspectos objetivos da relação médico-paciente para tornar resolutiva a ação necessária, permite ao médico unir estes dois mundos aparentemente tão dessemelhantes, a Ciência e a Cultura.
Mas devemos convir que só o fato de ser médico não basta – mesmo tendo a possibilidade de fazer uma lista de escritores e pensadores e poetas médicos que vai desde Tchekov e Conan Doyle a Pedro Nava e Moacyr Scliar, para só citar alguns – vemos que a modernidade levou o mundo para o pragmatismo econômico e o domínio da tecnologia. Cada vez mais somos dependentes das máquinas que desde a Revolução Industrial levaram ao desenvolvimento das forças produtivas em nível mundial e que vemos hoje em todos os setores da atividade humana. E, a partir dos anos 80 do século XX, com a tecnologia da computação e da informática, novos modelos e paradigmas se abriram para as ciências e para a Medicina em particular. Quanto a esta profissão, as mudanças foram enormes, pois passamos de um modelo clínico baseado na avaliação individual do paciente, de seus sintomas e também de sua situação social, – que vinha desde a medicina hipocrática e da semiologia francesa do século XIX, para o império dos diagnósticos mediados por aparelhos e dominados pela indústria tecnológica e farmacêutica.
Não pretendo aqui entrar em detalhes sobre este fenômeno social e econômico, apenas fiz estas digressões para entrar no pensamento de nosso novo Acadêmico Franklin Cunha. Autor de três livros de ensaios e crônicas, o primeiro já citado, o segundo A lei primordial, Ed. AGE, Porto Alegre, 2004; e A raiz da esperança, Editora AGE, 2010. Entre seus textos nota-se a preocupação primordial em dimensionar o impacto das novas tecnologias médicas na relação médico-paciente. Não pretendo, e nem poderia nesta breve apresentação, avaliar os textos que compõe estas coletâneas individualmente. Mas tentar entender o pensamento que os norteia e o estilo que os torna literariamente aprazíveis e artísticos. Como ensaísta os apresentadores dos três livros, Moacyr Scliar, Donaldo Schüler, Sergius Gonzaga, Luiz-Olyntho Telles da Silva, Sergio da Costa Franco,Luis Fernando Veríssimo, Luiz Antônio de Assis Brasil e outros, já falaram do estilista que procura a clareza e a digressão limpa e, por que não?, muitas vezes lúdica, para nos transmitir o seu pensamento e análise dos fenômenos humanos que o preocupam, que variam da situação da mulher, às questões populacionais e genéticas, à situação da medicina e da indústria farmacêutica, da linguística à história. Veem nele o leitor de Machado de Assis e Borges, o continuador de uma estirpe de estetas pensadores que começam com Montaigne (1533-1592) e Montesquieu (1689-1755), criadores do ensaio moderno.
Penso, no entanto, que o ensaísta e brilhante cronista Franklin Cunha tem seu pensamento embasado na dicotomia que se abre entre o pensamento de René Descartes (1596- 1650) e Giambattista Vico (1668-1744). O francês René Descartes é tido como o filósofo da modernidade científica baseada nas ciências matemáticas, e que abriu caminho para as grandes descobertas e novos paradigmas científicos. Era racionalista, e tinha como método a dúvida sobre o existente e sobre os sentidos, procurava a evidência através dos métodos analíticos e sintéticos. Poderia, no entanto ser considerado idealista, pois era teísta e acreditava nas idéias inatas. O napolitano Vico descontente com a posição de Descartes que tentava entender os fenômenos naturais e humanos pelas ciências matemáticas, propõe duas hipóteses radicais – a primeira dizia que era impossível entender totalmente a natureza, pois só Deus que a criara poderia fazê-lo integralmente; e partindo dessa premissa, entendia que ao homem só era dado entender o que ele próprio criava, a história e a sociedade. Poderia ser entendido como idealista pela primeira postura e como racionalista pela segunda, pois entendia que os homens fazem a história pela sua ação e comandados pela razão. Vico influenciou assim os pensadores sociais, como Augusto Comte (1798-1857), e Karl Marx (1818-1883).
E Karl Marx é outra das fontes do pensamento de Franklin Cunha. Polemista, sem jamais ser dogmático, defendendo ideias e discutindo ações e pensamentos políticos, econômicos e institucionais, tenta levantar através de demonstrações claras o manto que encobre as intenções veladas dos políticos e burocratas. Poderíamos lembrar a famosa frase de Marx no Manifesto do Partido Comunista de 1847: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”, pois o autor procura evidenciar as reais motivações que levam a certas atitudes e comportamentos tanto de classes como de governos. E não poderíamos esquecer que Franklin Cunha é também um moralista – não no sentido popular que esta palavra tem, mas no sentido de ser um defensor da ética e da dignidade humanas. Tanto fala contra os tratamentos hormonais que tentam acabar com a menstruação como ataca certo movimento radical feminista que tenta colocar o aborto como uma libertação da mulher, quando teria de ser encarado como algo extremo. E aqui o seu pensamento não é retrógrado como muitos apressadamente poderiam supor, pois se baseia em que a liberdade da pessoa, no caso a mulher e mãe, não pode egoisticamente sobrepujar o direito do filho. Assunto polêmico, é verdade, mas Franklin nunca foge deles, e defende suas teses com conhecimento e elegância.
Sim, me dirão os meus ouvintes com razão, e onde fica a literatura? O novel acadêmico passa a pertencer à Academia Rio-Grandense de Letras por suas qualidades literárias e de pensador. Não há nenhum contrassenso entre estas duas culturas. Mas, mesmo tendo anteriormente falado em seu estilo literário, temos que Franklin Cunha frequentou as oficinas literárias de Assis Brasil e Léa Masina, e escreveu crônicas e contos em jornais e revistas. Organizou junto com os colegas médicos Blau de Souza, Fernando Neubarth e José Eduardo Degrazia, a coleção Médicos (Pr)Escrevem, que em sete volumes abarcou a produção ficcional e ensaística dos médicos gaúchos, tendo entre seus colaboradores Cyro Martins e Moacyr Scliar.
Do contista e cronista queria lembrar as narrativas saborosas em que conta o fim melancólico da Arquiduquesa Maria Antônia, princesa real da Hungria, que pelos azares do destino e das guerras veio a ser vizinha do autor numa pensão em Porto alegre. Ou a história do executivo que teve a mão amputada quando trabalhava num país do oriente, e o enterro da perna do comendador num cemitério gaúcho. O ensaio e a ficção de Franklin Cunha se completam num todo estilístico harmônico. O ensaísta é o mesmo estilista das frases certeiras e bem feitas. Escrever, é para Franklin Cunha, a maneira mais efetiva e afetiva de ser.
José Eduardo Degrazia
Médico- Escritor- Membro da Academia Rio-Grandense de Letras