TEXTOSDISCURSOS
Discurso de Posse na Cadeira 40 - Colmar Duarte (27/05/2014)
27 de maio de 2014
Senhor Sérgio Augusto Pereira de Borja, digníssimo presidente da Academia Rio-Grandense de Letras, autoridades já nomeadas pelo protocolo, demais membros desta Academia, senhoras e senhores:
Nossa vida é marcada pelas pulsações do coração desde o ventre onde fomos gerados. No decorrer do tempo, à medida que avançamos pela estrada que nos tocou percorrer, as emoções vividas vão redesenhando nosso cardiograma. Ali, permanecerão como marcos, indeléveis e definitivos, aqueles momentos que o coração registrou como algo muito especial na taboa das nossas efemérides.
E este, com certeza, é para mim um deles.
Não poderia deixar de sê-lo. Pois recebo nesta solenidade o salvo-conduto para transitar entre os privilegiados literatos que têm assento na Academia Rio-Grandense de Letras. E esta honraria se reveste de maior significado, por ser o patrono da cadeira que me caberá ocupar, o mais conhecido, o mais ilustre, o mais festejado poeta da minha terra natal, Alceu Wamosy.
Foi ali, em Uruguaiana, berço dos poetas guerreiros, cidade histórica fundada pelos farrapos, atalaia da pátria, palco de guerras e revoluções, e que, paradoxalmente, em sua praça principal só tem, reverenciados no bronze, poetas e diplomatas, foi ali que esse poeta simbolista, veio ao mundo.
O exercício da Arte parece conferir asas aos artistas que, assim, alçam voo rumo às alturas não permitidas ao homem comum. São eles habitantes desse espaço, entre o céu e a terra, onde, já dizia Shakespeare, “existem muito mais coisas do que sonha nossa vã filosofia”. Os imaginamos num patamar onde transitam os anjos, longe de nosso alcance. Alceu Wamosy é um deles!
Apesar disso, em razão disso, o poeta continua muito presente na memória da cidade que foi seu berço e onde viveu sua infância e grande parte de sua adolescência. Certamente, onde já sonhava seus versos, caminhando pelas amplas e tranquilas calçadas, rumo à escola do professor Luiz Lopes, para, nas páginas da Seleta em Prosa e Verso, debruçar-se sobre a sabedoria dos mestres que lapidavam as idéias dos jovens daqueles tempos.
Wamosy, aos quatorze anos foi residir no Alegrete.
Aí publicou seu primeiro livro – Flâmulas. Viveu nove anos nessa cidade antes de mudar-se para Livramento, onde, com a idade de 28 anos, encontrou a morte; a fada negra com a qual dialogava às vezes em sua poesia:
A morte? Eu rio. Eu zombo. Eu desafio a morte!
Ela jamais venceu quem tem a alma tão forte,
Nem quem traz como eu trago um coração tão moço!
Não temia a morte, apesar de sabê-la sempre à sua espreita, como revelou aos amigos antes de ser ferido em combate, nos campos de Ponche Verde. Tanto que escreveu um soneto “Idealizando a Morte”.
E ela veio buscá-lo no leito do Hospital da Cruz Vermelha, em Livramento, onde permanecera ferido, e onde casara cinco dias antes, com sua amada, Maria Antonieta Bellaguarda.
Diz o poeta nas estrofes finais do citado poema:
Morrer com a placidez de uma flor que se corte,
Com a mansidão de um sol que desce no horizonte,
Sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte
- beijos de noiva e mãe irmanados na morte.
E morrer... E levar com a vida que se trunca,
Tudo que de doçura e de amargor teve a vida:
- o sonho enfermo, a glória obscura, a fé perdida,
E o segredo de amor que não te disse nunca!
Um poeta é um repórter de seu tempo. Wamosy o foi, certamente, mas foi também do nosso tempo. A poesia tem o dom da intemporalidade, e isso se adverte em seus versos. Como muito bem destaca o Professor Cicero Lopes, no prefácio das “Poesias Completas”, recopiladas por José Édil de Lima Alves, no livro “Alceu Wamosy”.
Diz ele:
Em, Flâmulas, seu livro de estréia, já se percebem as marcas da reflexão contingencial e do racionalismo (de origem neoparnasiana), como se lê, por exemplo, em ‘Monturo Humano”, onde se estabelecem as bipolaridades e as consequentes antíteses características de toda a obra poética de Wamosy:
Há criancinhas nuas – açucenas –
Desabrochando em lodos! Há virgindades
Cantando coisas torpes e obscenas!
E Deus fez desses antros obscuros,
Com toda a infâmia e a magoa das cidades,
O mais humano e negro dos monturos...
Como se vê, seus versos editados em 1913, portanto há mais de um século, são também do nosso tempo. Como são do nosso tempo, e de todos os tempos, quando o poeta fala do amor.
O crítico Fernando Goes, observa que Alceu Wamosy, de temperamento, por vezes, violento, apaixonado em suas convicções a ponto de morrer no campo de batalha de uma revolução, abrigou palpitante em seu coração esse sentimento que nos justifica a vida e pode vencer a morte. Como se constata em versos como estes, encontrados entre inúmeros outros que falam desse sentimento:
Eu nasci para o amor. Trouxe o destino
Das criaturas boas e infelizes,
.........................................
E o meu amor, mulher, é um amor que estremece
De desejos fatais, vagos, crepusculares...
Amor, ânsia de posse! Amor que vibra e cresce,
Ardente como o fogo e fundo como os mares!
..........................................
Sonhei o nosso amor, num sonho de criança,
Com o cérebro a escaldar em febre de loucura.
..........................................
Tenho só duas afeições na vida:
Uma, é minha Musa;
A outra – o meu Amor...
..............................................
- Eu vivendo da vida de teus beijos,
Tu, vivendo, feliz do meu afeto!
Um demiurgo, um hermeneuta, em suas confidências com Deus, fora alertado para a aproximação do final de seus dias. Em carta ao amigo João Pinto da Silva, revela esse presságio, prometendo enviar os originais do livro “Coroa de Sonhos”, que seria publicado dois anos após a sua morte.
Dizia Wamosy, nessa missiva:
Não quero que os fariseus matem também, pelo extravio e pelo esquecimento, o que podia perdurar de mim.
Mas nada nem ninguém poderia matar ou condenar ao esquecimento a obra do poeta que, segundo Enedy Rodrigues Till, um de seus mais dedicados biógrafos, sonhara “ morrer num fim de dia outonal, tristonho e doloroso...”
Mas partiu para o além ao raiar de um novo dia, no início de uma nova primavera, dia cheio de luz, dia que não tem fim, pois é a própria Eternidade...
...................................................
Há meio século, meu conterrâneo, Cicero Urroz Lopes, na época, exercendo seu sacerdócio de professor, em Uruguaiana, incentivou-me a enfeixar em livro meus versos de iniciante. Condicionei a publicação dos mesmos dizendo o seguinte:
Não me comove nem me envaidece o fato de ver aquilo que escrevi, em letra de forma. Só tomarei esse caminho se me deres a certeza de que com isso estarei acrescentando algo ao que já existe, ao que já foi dito.
Seu veredicto, com as bênçãos e o prólogo do meu padrinho José Édil de Lima Alves, resultou na publicação do meu livro de estreia. Desde então fui deixando pelo caminho trilhado até aqui, as flores e os espinhos, cultivados ao sol dessa vivência que me proporcionou o destino de lidador na faina de percorrer os labirintos da própria alma.
Meu verso, sem ufanismos ou saudosismos, utiliza como matéria prima, não apenas o barro moldado pelas mãos daqueles que lá construíram os primeiros ranchos, mas, e principalmente, a luz dos crepúsculos que matizam, enternecem e dão cores definitivas e definidoras, à paisagem psicológica dos que habitam a extensão das coxilhas dos meus pagos de origem.
Um dia, um dileto e saudoso amigo, o poeta Antônio Augusto Ferreira, falando de nossas afinidades e inquietudes, fez o seguinte comentário: “a diferença entre a nossa poesia é que eu enxergo o campo pela janela da casa grande e tu, pela porta do galpão!”
Nada é mais verdadeiro. Aí foi minha escola. Daí eu venho.
E nesse detalhe reside a questão já levantada por alguns estudiosos, da existência de uma poesia feita “para o gaúcho” e outra feita “pelo gaúcho”.
Foi nos galpões que os homens que habitam as fronteiras rebeldes dessa pátria sem aduanas nem discriminações preservaram e transmitiram seus conhecimentos mágicos e ancestrais. Ali se fez da alma dos campeiros o repositórios da herança genética de nossas raízes culturais.
Foi nos galpões, que Alcides Maya, Simões Lopes Neto, Augusto Mayer, Darci Azambuja, Ciro Martins, para citar apenas escritores nascidos no lado de cá dos rios Uruguai e Quaraí, foram descobrir, nos sentimentos dos que nos precederam e em sua oralidade encantadora, uma proverbial sabedoria.
Para reforçar o que digo, repito o que escreveu José Hernández, o genial autor do Martín Fierro: “Existe certa semelhança íntima, certa identidade misteriosa entre todas as raças da terra que só estudam no grande livro da natureza, pois dele deduzem, e vêm deduzindo há mais de três mil anos, os mesmos ensinamentos, as mesmas virtudes naturais, expressas em prosa por todos os homens do globo, e, em verso pelos gaúchos que habitam as vastas e férteis comarcas que se estendem por todo o pampa.”
Os poetas, os escritores, lidam com sentimentos que são iguais em qualquer lugar da terra. O que caracteriza e identifica a arte literária de um povo, de uma região, é sua linguagem metafórica.
Em meus poemas, em minhas narrativas, procuro desvendar e transmitir esse admirável saber da gente do campo, estribado em máximas e pensamentos morais que as mais antigas nações, como a Índia e a Pérsia, conservavam como tesouro de sua sabedoria, que os gregos nos ensinavam com Sócrates, Platão e Aristóteles.
O coração humano é o mesmo que impulsiona a vida e move o mundo desde sempre.
Quem escreve vive mais de uma vida. A real e as, que imagina e anima, nesse afã de descobrir as razões de sua passagem por esta dimensão. E o inusitado disso é que, ao contrário da sua própria, que tem fim com sua morte, as outras sobrevivem aos tempos.
Quando me dediquei a escrever narrativas já havia transitado por todas as etapas que Deus oferece ao homem, para que descubra uma razão de viver. Meus valores e conceitos, já os mudara muitas vezes, nesse transumar em busca do justo e do verdadeiro. Entendi que gastara meus sapatos o suficiente para descalçá-los, e ser um contador de histórias. E, principalmente, histórias do meu povo e da minha aldeia.
Usando a vivência que a sorte me proporcionou , escrevo, não sobre o gaúcho idealizado pelos tradicionalistas, ou seu passado glorioso, mas, e substancialmente, sobre os sentimentos dessa gente que vive hoje no campo, em meio à tecnologia e a informação nunca imaginadas nos tempos de antes.
É dessa argila soprada pelo espírito dos séculos, que cobram vida meus poemas, que nascem minhas narrativas e dou forma aos meus personagens. Dessa maneira entendo contribuir, mesmo que modestamente, para o registro de sua existência.
Como manifestei anteriormente, penso que nossas atitudes são válidas à medida que acrescentam alguma coisa. É por isso que, no momento em que sou recebido como membro da Academia Rio-Grandense de Letras, ajusto meu sextante buscando o mesmo horizonte que norteou meus passos até aqui:
Trabalhar para fazer por merecer esta distinção.
Depois deste dia já não poderei dizer como Alberto Caeiro:
Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia.
Recebo minha admissão nesta casa como a maior honraria que um escritor que nunca deixou sua aldeia, poderia receber.