TEXTOSDISCURSOS
Saudação a Maria da Glória Jesus de Oliveira – António Filipe Neiva Soares (27/08/2015)
01 de setembro de 2015
Excelentíssimo Senhor Doutor Sérgio Augusto Pereira de Borja, presidente da Academia Rio-Grandense de Letras,
Excelentíssimo Senhor Doutor Avelino Alexandre Collet, vice-presidente da Academia, iminente Procurador de Justiça,
Excelentíssimo Senhor Rafael Bán Jacobsen, Secretário-Geral da Academia,
Recipiendária, Promotora de Justiça e escritora, Maria da Glória Jesus de Oliveira,
Digníssimos acadêmicos,
Autoridadas presentes ou representadas,
Senhoras e Senhores.
Nesta hora fim da tarde de 27 de agosto de 2015, eis-nos em ato de homenagem à Maria da Glória Jesus de Oliveira, que ora conquista mais um título para enobrecer e dignificar seu ramalhete de notoriedade. Hoje, ela, pé ficado no primeiro degrau, está subindo o pórtico da Academia Maior do Estado – Academia Rio-Grandense de Letras.
Dos seus títulos maiores e honorários, obtidos e conservados, falamos e deles damos conta: Promotora de Justiça e Advogada, Artista Plástica; Psicanalista Didata, Atriz de curtas em vídeo; Autora de cinco obras literárias; Fundadora e membro do Grupo VivaPalavra; Membro da editoria da Revista CAOSótica; Prêmio Luso-Brasileiro de Contistas, da Academia de Letras de Goiás/GO – Prêmio Melhores Contistas 2014.
Merecidas honras para o nome que, nascido no berço dourado da carência, rica de ação crianda e criativa, assim fertiliza a sobrevivência e vai traçando as amplas vias espirituais da sua realização pessoal.
Laguna a viu nascer, aos 15 de agosto de 1943. Tempo nem houve para o jardim escolar. Dos cinco aos 10 anos, trabalha em afazeres domésticos de pequenas firmas locais. Dos 11 aos 16, é empregada doméstica. Nos quatro anos seguintes, é auxiliar de copeira, e, logo, dos 20 aos 26, é auxiliar de escritório.
Vem a primeira profissão estábil: Monitora Penitenciária do Instituto Psiquiátrico Forense, exercida de 1970-1976. Daqui, avança e investe sete anos na função de Auxiliar Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho, sendo que o tempo sobrepujante é investido no curso de direito e no concurso de Promotora de Justiça, cargo este que exerce de 1982 a 1988.
Um dia, porém, acorda-se em nova realidade. A excelente promotora, muito jovem ainda, nos seus 45 anos de plena vitalidade, está sem mesa de trabalho. Se a justiça perde a funcionária superior, a cultura do clássico Otium ganha um nome que recomeça quase do nada. Maria da Glória investe em estudos extra-escolares. Leituras em novas áreas, oficinas literárias, ingresso em associações, participação em coletâneas, pesquisa e estudo psicológico.
Agora, neste novo contesto, lança Despertar, em que reúne as primícias de sua produção na área literária. No caso, uns 76 poemas, incluindo duas dezenas de sonetos. Para principiante ou estreante, pode considerar-se uma boa obra, seguindo a regra geral de pincelar impressões ou momentos emocionais experimentados.
Era de se esperar que a autora continuasse a poesia. No entanto, havia claras insuinuações na sua obra de que Maria da Glória não ia dar-se bem com o poema. Constantemente caía no tema expositivo e na descrição. Inesperadamente, em 2000, edita o romance Ninho de Pedras. Tema: uma jovem recém-casada, ansiando filhos, sofre uma série de oposições, como que impostas pelo destino, até que a filha, Rita, nasce. Bem tratada. Bem recebida. Nada lhe faltando. Nem escola, nem carinho, nem apoio dos pais. Pensa-se na festa dos 15 anos. Tudo correndo bem. Mas as forças do destino (ou seja, as fantasias inconscientes, actante, configuradas em Rute), opondo-se, matam quase que ao mesmo tempo a Rita e seu pai, Jairo.
Porém, a boa solução tem de aparecer. As forças inconscientes comandam, explicitam desejos e recriam o caminho a seguir. Um pouco de milagre romântico literário e muita fé ou confiança na própria ação ajuda, como por uma supercompensação, a reconstituir a devastação. A mãe (ex-jovem, agora viúva) adota a menina andrajosa e feia para seguidamente arranjar um novo marido (ex-sócio de Jairo) e breve um novo filho.
Se a obra Despertar assinala uma tentativa da autora para entrar nos roteiros literários, também fica claro que Ninho de Pedras corresponde a outra tentativa de auto-afirmação no campo literário, documentando a pujança criativa de temas e motivos bem como um excelente poder congeminativo.
Mais uns anos. Precisamente, em 2004, Maria da Glória lança Contos Transeuntes, que expressam seu primeiro passo seguro no campo literário e colocam a autora no roteiro certo da sua vocação literária. Obra que inclui um conjunto de 35 contos, alguns com aproximação de crônica, bem pensados, medidos e seguros.
Além do Jardim, a nova obra lançada em 2010, ainda cede um pouco à novela, de que lhe ficara de Ninho de Pedras, obra um tanto rápida, mas de conteúdo firme, elegante, bem congeminado nas sequências narrativas. Um e principal texto incluído é Além do Jardim (dá o nome do Livro) e preenche, seguramente, dois terços da obra e joga, também, com a aspereza de títulos, como já acontecera em Ninho de Pedras. Aqui, a protagonista prepara quarto e berço para os filhos. Apenas um aparece, mas cedo falece. O ninho está pronto. Em vez de filhos, tem pedras.
No longo de Além do Jardim, a autora compensa a vida, aparentemente dura e sofredora da mãe, nas lides da casa e campo, com uma vida melhor, agora em novo contexto, chamado jardim (podia ser um novo ninho), mas logo fatalmente manchado pela doença, comandado pela sentença psicodinâmica ou psicoliterária: mãe não merece o campo da casa – o novo jardim – que te ofereço.
A recém-editada obra Contando Conto (2014) garante para sua autora os foros seguros de escritora e o quanto ela é mão firme e cérebro congeminador de contos e crônicas literárias, estas com focalização em memórias ou experiências pessoais, aqueles – os contos – decorrentes da observação do cotidiano e circunstancialismo local. A obra inclui 36 narrativas bem oficinadas e melhor congeminadas. Não é nem foi nunca propósito de Maria da Glória buscar e investigar os filigranas da linguagem. A narrativa de Maria da Glória vale – e nisto é mão forte – pelo modo como tece e consegue entretecer temas e motivos, nisto esgotando o trabalho necessário para cada narrativa.
Em Contando Conto já conta com um número razoável de narrativas de alto nível. Nos volvemos para alguns textos.
Um deles, que porta o título de O Achado, é uma narrativa modelar, arrancada com mão forte do nosso cotidiano, assim modelizado:
– taxista no ponto, esperando cliente;
– mulher entra com criança nos braços e indica endereço para onde deve ser conduzida;
– no final da corrida, a mulher paga e sai do carro com uma criança ao colo, e ele arranca, irritado por ela nem dizer um obrigado;
– após breve demora, arranca para casa e, em chegando, chama pela esposa para recolher uma criança esquecida no banco traseiro do carro. A esposa o incrimina: que a criança é filho dele e da amante. Levado o carro para a delegacia, fica esclarecido que a mulher saíra do táxi com um gêmeo e logo viria buscar o outro.
Em Eu vi Teresa, uma mãe, agora viúva e idosa, vai, em fim de tarde, sentar-se num banco da praça, onde, em tempos passados, a filha tantas vezes o fizera, nos intervalos do trabalho (era próximo) para ler, estudar ou lazer. A velha mãe, toda embalada nessa recordação da filha, cai em delírio, aperta a mão como se estivesse segurando ou prendendo alguma coisa. À pessoa junto, que tenta socorrê-la, diz: “Ajuda-me, preciso alcançar a moça, preciso dela. Depressa, segure-a. Não deixe que se vá, por favor. Corra, segure-a”.
Finalizando:
As obras narrativas breves de Maria da Glória Jesus de Oliveira, lidas por leitor comum, podem passar despercebidas na profundidade das motivações que emergem das referidas fantasias inconscientes. Os sentido e significado de muitos dos textos exigem, para mais valer, uma leitura cuidadosa e consciente. Também fica definido que a forma predileta da autora, e na qual melhor se realiza, é a narrativa breve, tecida e modelada pelo fogo da congeminação criativa.
O lado ou faceta mais forte de cada texto é sempre o enredo, a orquestração e o travejamento da estrutura que, como atrás ficou escrito, é cuidadosamente conduzida para a terminalidade desejada. Por outras palavras, fica assinalado que a realização do texto avança muito mais pelo lado interno (como alguém sugere: escava por dentro a sensação). As fontes criadoras alimentam-se muito mais dos recursos inconscientes do que no colorido ou solenidade da linguagem. Esta, revelando um retardo em relação à orquestração da obra.
As obras que melhor definem Maria da Glória como contista, única e pessoal, são os Contos Transeuntes (2004) e Contando Conto (2014). Com a primeira, a autora firma-se no gênero e encontra seu roteiro definitivo de escritora a seguir. Contando Conto orna-se a obra da maturidade, revelando já relativo avanço em relação à linguagem. Deste lado, assinala-se a tendência para demorar o fluxo narrativo. O que permite uma ainda magra conclusão: em Contos Transeuntes, a medida média de cada narrativa é de página e meia para duas páginas. Em Contando Conto, essa média e de duas páginas para duas páginas e meia. Contando Conto é, sem duvida, a melhor obra da autora e que lhe dá jus ao tílulo - Maria da Glória Jesus de Oliveira - um caso muito especial de narrativa. E sua obra é válida em toda linha e bem merecedora.
Maria da Glória impõe-se como autora que avança pelo lado interno do texto, movendo-se pela força do motivo e logo, orquestrando, montando ou criando enredos, tece o conto num ato imediato e total ou, se necessário, sequenciando as partes que vão constituir o tema. Em alguns contos - e são dos melhores - a diegese ou a matéria a ser narrada quase se reduz a essas sequências, o que dá um toque todo especial a sua narrativa inédita e breve.
Concluindo, a Academia Maior do Estado se engrandece com o nome de Maria da Glória, que nos testemunha sua capacidade exemplar do bom conto, já realizado, e de que muito mais pode realizar.