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Walter Spalding: Literatura e história - Moacyr Flores
26 de novembro de 2014
Moacyr Flores¹
Walter Spalding nasceu em São Jerônimo, Rio Grande do Sul, em 28.10.1901, e faleceu em Porto Alegre a 5.6.1976, deixando vasta bibliografia que abrange os mais variados setores do saber humano.
Spalding, professor, poeta, cronista, contista, dramaturgo e ensaísta, destaca-se como pesquisador da história de Porto Alegre, com livros e inúmeras crônicas esparsas em jornais e revista.
Em 1937 José Loureiro da Silva assumiu a Prefeitura de Porto Alegre e convidou Walter Spalding para dirigir o Arquivo e Biblioteca do Município. O incansável pesquisador criou o Boletim Municipal, com o objetivo de levar a documentação às mãos de outros pesquisadores, divulgando também os atos do governo municipal e ensaios de história local.2
O bibliógrafo Pedro Leite Villas-Boas relacionou 130 obras de Walter Spalding, entre livros, dramas, ensaios em revistas e boletins, excluindo grande número de artigos esparsos em jornais, comprovando sua dedicação à pesquisa e aos estudos da história.3 Essa longa bibliografia iniciou nos bancos escolares com os primeiros versos, como a maioria dos brasileiros. Depois vieram as crônicas, os contos, a crítica literária e a dramaturgia.
Na década de 1930, o Brasil passava por drásticas reformas, havia uma nova ordem que se transformaria no Estado Novo, seguindo a tendência mundial de um Estado forte. O Brasil precisava de herois, de santos e de mitos para despertar o amor ao país. A História foi utilizada para o ensino de civismo nas escolas e explorada como um ramo da literatura.
Em 1931, Spalding publicou Farrapos, coletânea de contos com referências a episódios e figuras da Guerra Civil dos Farrapos (1835-1845). Como ele cita documentos para dar verossimilhança a seus contos, que têm como heróis personagens reais da guerra civil, alguns leitores pensam que a obra é de história e que os diálogos aconteceram na realidade.
O autor usa uma linguagem simples e plena de força e lances épicos. A criatividade literária dos fatos não consta em documentos, a agilidade de diálogos como nos episódios de Corsários ou Bento Gonçalves e Pedro Boticário, ou Combate de Rio Pardo dão realce e vivacidade ao texto.
A obra deve ser lida com cuidado, pois mistura contos literários com fatos históricos. Alguns contos apresentam notas ao pé da página o que aumenta a confusão. O livro apresenta a transição do literato para o historiador.
Em 1932, Walter Spalding recebeu o reconhecimento de seus trabalhos no campo da história, passou a fazer parte do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Pertenceu também à Academia Rio-Grandense de Letras.
No livro À luz da História, editado em 1933, o historiador já se desprende mais do literato. Spalding escreve biografias, historiografia e estudos sociológicos sobre a formação da estância. A busca do herói, a exaltação dos feitos e o destaque do anedótico colocam Spalding na corrente histórica dos seguidores do inglês Thomas Carlyle (1795-1881), que ainda perdurava no Brasil.
Carlyle considerava a História como aquilo que o homem tem realizado neste mundo, portanto, é no fundo a História dos grandes homens, condutores de homens, modeladores de padrões, criadores de tudo que o homem comum imagina fazer ou atingir.4
Dentro do ciclo da história farroupilha, Spalding publicou, em 1939, História da Revolução Farroupilha, refundida em 1958, com título de Epopeia Farroupilha, e no dizer do autor “não é segunda edição daquele, mas obra nova, e estudo definitivo sobre o memorável decênio”. 5
Spalding baseou-se em farta bibliografia e documentação para escrever sua obra definitiva sobre a Guerra Civil. Dividiu a obra em quatro partes. Na primeira relacionou os chefes farroupilhas, destacando que eles não eram republicanos e nem separatistas por não proclamaram a república em 20.9.1835, mas somente um ano depois, conforme afirmação de Olyntho Sanmatin e de acordo com a política de nacionalização de Getúlio Dornelles Vargas.6
Concluiu o primeiro capítulo afirmando que os rio-grandenses estavam bem longe das ideologias platinas, entusiasmados pelas idéias da Revolução Francesa, citando como influência de certo valor as pregações contínuas do padre Caldas, que viera da Confederação do Equador com doutrinas franco-norte-americanas, oriundas da maçonaria. Afirma que os farrapos não receberam influências platinas, contrariando as idéias de Alfredo Varela.
No segundo capítulo relacionou os autores lidos pelos farroupilhas, classificando-os em clássicos greco-latinos e democráticos, incluindo por engano entre estes os autores liberais e conservadores.
Na segunda parte, Spalding examinou os presidentes da província no período revolucionário e a instalação da primeira Assembléia Provincial. Fundamentando-se em proclamações e manifestos dos farrapos, classificou o movimento como essencialmente reivindicador, excluindo qualquer outro propósito. Depois narra a lutar armada seguindo um plano cronológico.
Na terceira parte estudou a cooperação interprovincial e estrangeira, concluindo “que os rio-grandenses, os gaúchos dos velhos tempos, procuraram sempre a união através da federação, ligados, portanto sempre ao conjunto homogêneo, à terra mater, o Brasil uno e forte”.
Na quarta parte, Spalding transcreveu vários documentos, dispostos em ordem cronológica.
A epopéia farroupilha foi elaborada dentro dos princípios da história descritiva, com a seleção de assuntos obedecendo à cronologia. Embora tenha se referido a estrangeiros e a brasileiros de outras províncias, Spalding estruturou sua obra isolada do contexto mundial, chegando a julgamentos estimativos porque buscou unicamente respostas sem argumentação ou interpretação.
Publicou em 1944 Farroupilhas e caramurus – a brasilidade dos farrapos, apresentando um resumo da história militar do Rio Grande do Sul. Argumenta que a derrota da batalha do Passo Rosário articulada com o déficit pela retirada das rendas e as dívidas provinciais não canceladas se transformaram em reivindicações pelos revolucionários, eclodido na grande revolução. Spalding considerou o golpe de 7.4.1831, que depôs Dom Pedro I, como uma vitória do Partido Liberal. O Partido Conservador era arbitrário, provocando reações na província. Os principais agitadores eram o padre Caldas e Juan Lavalleja. Os conservadores armaram a intriga política entre Bento Gonçalves da Silva e as autoridades.
Assim, a revolução teve como fim exclusivo reivindicar os direitos dos rio-grandenses e expulsar o presidente Antônio Rodrigues Fernandes Braga, junto com o comandante das Armas Barreto Pereira Pinto. A segunda parte da publicação apresenta bibliografia comentada sobre a Guerra Civil dos Farrapos.
Spalding realizou o grande encontro consigo na pesquisa histórica, o literato transformou-se em historiador que sistematizava suas buscas da verdade, num esforço de autodidata. Justamente aí reside seu grande mérito: sem ter formação específica de historiador, vasculhou arquivos e museus, manuseando papéis velhos e empoeirados, num esforço de reconstrução da história, considerada por ele como “uma ciência sagrada, aliada à arte, conforme ensinamento de Augusto Comte”, conforme sua apresentação escrita no Boletim Municipal nº 1.
Conforme sua própria explicação, Spalding ao organizar o Pavilhão Cultural para as comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha, entrou em contato com a vasta documentação sobre Porto Alegre, surgindo então seu interesse pela história da capital.
O Boletim Municipal circulou de 1939 a 1946, em edição semestral, num total de 10 volumes. Suas páginas transcrevem paleograficamente documentos da Câmara de Vereadores, sobre a independência do Brasil, propaganda e instalações da República, mapas, fotografias antigas e notícias do bicentenário de fundação da cidade festejado em 5.11.1940. Há também ensaios e monografias de autores renomados da época.
Infelizmente a maior parte da documentação do Município de Porto Alegre encontrava-se nos porões da Prefeitura e foi destruída pelas enchentes de 1926 a 1928. Segundo testemunho de Spalding, pessoas com desprezo ao patrimônio histórico venderam documentos como papéis velhos. O que sobrou foi classificado e estudado por Spalding. A publicação de parte destes documentos no Boletim Municipal basta para dar um lugar de destaque na historiografia municipal a Spalding. Seus ensaios e monografia sobre a cidade servem de ponto de partida para os historiadores de novas gerações.
No primeiro número do Boletim Municipal, Spalding publicou um ensaio com a situação, limites, geologia, clima, flora, fauna, hidrografia, ilhas e história de Porto Alegre. Considerou os açoritas como fundadores de Porto Alegre, “provavelmente por solicitação de Jerônimo Dorneles Vasconcelos e Menezes, primeiro donatário dos terrenos em que assenta a parte mais antiga de Porto Alegre”.7
Essa afirmação está baseada na carta de Rego Monteiro que comenta a descrição do Porto de Viamão por Blasco, acompanhante de Gomes Freire de Andrade: “a povoação é um arroio de casas de palha habitadas por casais das ilhas e é bastante fértil”.
Spalding, ao estudar a documentação que dispunha na época, afirmou que não havia data de fundação da cidade, portanto a data mais plausível para se comemorar o surgimento de Porto Alegre seria a de 5.11.1740, assinalada na concessão da sesmaria de Jerônimo Dorneles.
No Boletim Municipal nº 4, Spalding considera Jerônimo Dorneles como fundador de Porto Alegre, incluindo a genealogia do prefeito José Loureiro da Silva até seu ancestral Jerônimo Dorneles.
Fernando Corona elaborou um medalhão em gesso com as representações das cabeças de perfil do fundador e do prefeito. Desenhou uma casa de três peças, atribuída à sede da estância de Dorneles no alto do morro Santana.
Em 5.11.1940 comemorou-se o bicentenário da fundação da cidade, com a presença do presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas.
Em 1943 o Conselho Nacional de Geografia realizou o concurso de monografias municipais, incorporadas ao X Congresso Nacional de Geografia, realizado em Belém do Pará, sendo premiada a monografia Município de Porto Alegre, de Walter Spalding.8
Em 1967 a Editora Sulina publicou Pequena História de Porto Alegre, de Spalding. A obra destina-se às professoras primárias, atualmente do ensino básico. Portanto o plano do livro é descritivo e cronológico, sem crítica e sem comentários.
O livro inicia com os antigos indígenas, refere-se aos tropeiros e “estanças”, aponta Jerônimo Dorneles como povoador de Porto Alegre, descreve o povoamento pelos açorianos, trata da freguesia e do governo militar, dos primórdios da nova cidade, relaciona os governos municipais, registra o movimento da independência do Brasil, apresenta a formação da Câmara Municipal, narra Revolução Farroupilha, aborda o surgimento do transporte, da iluminação, da água e do esgoto. No período republicano historia a formação dos bairros e a descrição das praças com o inventário de monumentos.
Em anexo transcreve vários documentos que abrangem a periodização dada pelo autor. A farta documentação, em parte reproduzida na obra, as ilustrações escolhidas, o texto elaborado em linguagem clara e simples, os fatos abordados com objetividade fazem da Pequena História de Porto Alegre um livro didático por excelência.
Infelizmente Spalding insistiu no erro da fundação de Porto Alegre, que hoje se contra vulgarizado nas escolas, apesar de parecer contrário do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, que aponta José Marcelino de Figueiredo como quem escolheu o sítio e determinou a demarcação dos lotes e ruas. A data correta é de 26.3.1772, quando a capela de São Francisco dos Casais foi elevada à categoria de freguesia, iniciando a formação do núcleo urbano.
Spalding não se esqueceu dos pequeninos, preparou a História de Porto Alegre para a infância e juventude, editada em 1975, contada pelo índio Caray.
Walter Spalding possui o grande mérito de ter se dedicado à investigação histórica quando a maioria dos chamados historiadores não freqüentava arquivos e escrevia de acordo com suas opiniões e criatividade literária.
É interessante notar, que durante um longo período, pesquisadores como Olyntho Sanmartin e Walter Spalding consideravam a história como uma espécie de literatura, apesar de Heródoto ter criado a história separada da literatura, 400 anos antes da era cristã:
A obra de Walter Spalding apresentada no instante em que a literatura histórica sul-rio-grandense pouco falava da opulência dos arquivos seculares, vale por um esforço helênico. Indiferente ao clima social e aos minguados leitores dos fatos históricos, Walter Spalding dedicou-se inteiramente à literatura de investigação de modo a determinar uma perfeita exatidão das ocorrências. 9
Bibliografia
CARLYLE, Thomas. Os heróis. S. Paulo: Melhoramentos, 1963.
SANMARTIN, OLYNTHO. Imagens da história – ensaios. Porto Alegre: Centro, 1951.
_______________. Mensagens. Porto Alegre: Centro, 1947.
SPALDING, Walter. À luz da história. Porto Alegre: Globo, 1933.
________________. Boletim Municipal. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, 1939-1946.
________________. Farroupilhas e caramurus – a brasilidade dos farrapos. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1944.
________________. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967.
________________. A epopéia farroupilha. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969.
VILLAS-BOAS, Pedro Leite. Notas de bibliografias sul-rio-grandenses. Porto Alegre: A Nação/SEC. 1974.
1 Professor Doutor de História do Programa de Pós-graduação de História da PUCRS.
2 SPALDING, Walter. Apresentação. Boletim Municipal, nº 1, 1939, p. 2.
3 VILLAS-BOAS, Pedro Leite. Dicionário bibliográfico gaúcho. Porto Alegre: EST/Edigal, 1991, p. 235 a 237.
4 CARLYLE, Thomas. Os heróis. S. Paulo: Melhoramentos, 1963, p. 9.
5 SPALDING, Walter. A epopeia farroupilha. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969, p. 15.
6 SANMARTIN, Olyntho. Imagens da história – ensaios. Porto Alegre: Centro, 1951.
7 SPALDING, Walter. O município de Porto Alegre. Boletim Municipal nº 1m 1939, p. 134.
8 SPALDING, Walter. Município de Porto Alegre. Boletim Municipal nº 6, 1943, p. 389 a 417.
9 SANMARTIN, Olyntho. Mensagem. Porto Alegre: Centro, 1947, p. 123.