TEXTOSRESENHAS

Degrazia: obra poética - Luiz-Olyntho Telles da Silva

04 de setembro de 2021

Da poesia de Degrazia, tempos atrás, fiz alguns comentários e disse ter gostado de A nitidez das coisas por cantar a solidão, enquanto condição para a liberdade de pensar e, desde aí, poder dirigir-se ao outro, tal como um dia cantou Góngora, em suas Soledades, e também Baudelaire, que chama o leitor de mon semblable, mon frère! É o sonho dos poetas.

Ao comentar Parábola para Unicórnios, disse de meu encantamento com sua valorização da palavra como criadora do mundo. O Gênio Poético há de ter sido o princípio primeiro. Degrazia valoriza aí a parábola. É com o recurso dessa alegoria que ele compara os Unicórnios, esses seres raros, aos poetas, seres também raros. É que seu monóceros, nas palavras de Ezra Pound, representa as antenas da raça, capazes até de antecipar o futuro.

Pois a mim também encantam as metáforas. Aprendi a valorizá-las logo no início de minha formação como psicanalista. Junto com a metonímia, elas constituem a estrutura básica de funcionamento do inconsciente. Quando Lacan diz que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, ele toma essas duas figuras como equivalentes – respectivamente –, dos mecanismos de condensação e deslocamento, propostos por Freud. Conto-lhes isso como argumento para falar-lhes, hoje, de O Rio Eterno, publicado por Lumme, de São Paulo, ainda em 2020.

José Eduardo Degrazia é um viajante no tempo e no espaço. É que, para ele, isso é fácil. Basta-lhe acompanhar o Rio Eterno da poesia. Assim como a caverna abriu-se um dia para Platão, como um bocejo da montanha, deixando ver nas sombras aí projetadas a história do mundo, o poeta, por entre as nuvens, vê agora filtrarem-se raios de luz e iluminar-se o rio. Na margem, o salgueiro pende seus ramos em reverência às águas passageiras enquanto suas folhas, sobre o caudal, como se fosse papel em branco, desenham runas. Na luz difusa, as palavras entreouvidas podem transformar vidas. A compreensão tece memórias. Seu nome pode ser Penélope, mas também pode ser Verônica. O cristal do tempo refrata a luz. De um lado, a expulsão dos vendilhões do tempo (o poeta diz do Templo) denuncia um impossível que nunca termina; de outro, a luz em si, como oração ressoando nas igrejas. A missa, que desde a Batalha se levanta, entoa a importância dos limites, como estes, definidos em Aljubarrota.

Nossa história, de origem portuguesa, é uma parte valente pelo todo da história do mundo. No mosteiro da Batalha, entretecido na noite, agora descansam Dom João I e sua esposa, Dona Filipa de Lencastre. E o Rio, como uma corrente de anagramas, nem sempre perfeitos, larva, lavra e lava.

E quando o poeta pergunta Para Onde, considera que

São apenas palavras, mas tão sólidas

Feito velhos muros de Babel, tijolos

Uns sobre os outros para atingir o céu.

Nesses versos, se um dia o homem quis um zigurat para alcançar o céu, a transformação do adobe em palavras faz entender que se um diz uma coisa, outro escuta outra. Mil e uma diferenças. Cada trecho do percurso da flecha de Zenão, lembra o poeta, desdobra-se ao infinito. É o que nos permite comparar a abóbada celestial com a metade de uma laranja. Por isso não importa para onde se vá. Heidegger canta a importância do Vorweg, de um caminho à frente. E o poema termina dizendo que os Reis Magos seguiram o Cometa.

O salso-chorão pende suas lágrimas sobre o Rio e Huygens vê formarem-se sobre a corrente novos círculos. Cada corpo colocado sobre um corpo em movimento comporta-se como se fosse a origem desse movimento, estabeleceu o físico. Assim são os movimentos da história, poderia ter dito Diógenes frente ao rei. Os círculos de uma lágrima, pedrinha caída no lago, abrem-se ao infinito e o poeta canta o coração da sangrenta pétala.

Duzentos anos antes de Aljubarrota, o poeta vai a Castela. Suas ruas estreitas, os telhados sob os quais se abrigam lembranças de Rodrigo Dias, que um dia veio de Vivar em busca do título de Cavaleiro e logo foi cognominado El Cid Campeador, o Senhor que mata nos campos de batalha. Nos muros por onde circularam os heróis, hoje resta a poeira.

Em Matéria do Sonho, Degrazia me faz pensar na metáfora como uma espécie de argamassa do sonho, fugidia como areia de ampulheta. Dizer dessa inconstância é tarefa do poeta. Suas andanças por essas plagas de Espanha lembraram-me do poeta andaluz, Don Luis de Góngora, de sua poesia culterana, plena de ricas metáforas associadas a uma particular sintaxe. Federico Garcia Lorca, que estudou bem de perto seu método de plasmar metáforas, disse que ele pensava, embora nunca tivesse dito, que a eternidade de um poema depende da qualidade e do enlace das imagens. Por certo é debruçado sobre essa assertiva que Proust afirma: Só a metáfora pode dar algum tipo de eternidade ao estilo. A sintaxe de Degrazia, por sua vez, leva-o a outras construções: embarcado na metáfora, o próprio poeta segue junto. Se deve sofrer a expulsão da platônica República, que seja em direção ao outro. Ele

não se conforma em ser uma visão.

Sua ambição é maior:

querendo ser ao mesmo tempo etéreo,

feito confusa infusão de ervas raras,

remédio para a solidão. (p.24)

Ah! A Solidão. A solidão, em parte, é como o silêncio, reconhecido quando as pessoas se vão,

quando as notas da sinfonia ainda ressoam na sala

e

[...] quando se adensa

feito flor que abre suas pétalas ao sol nascente,

adquirindo, assim, o volume da pedra. E o tema do silêncio é o da morte. Lembro-me de Vinicius de Moraes:

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão.

Mas, lembremos, são sempre os vivos que avaliam e falam.

Em Romanceiros, o silêncio dos romances passados, eternos na memória de cada um, revivem em mim com o passeio do poeta pela estrada de Alcobaça. O mundo, que para mim pode ser o lugar onde nasci, onde passei a mocidade, para o poeta, agora, ainda que por um instante fugidio, chama-se Camões, Camões d’Os Lusíadas.

Aí, vale-se do Cantar de amigo, um simples eufemismo do medievo para dizer da paixão das mulheres por seus maridos, por seus amantes. Dona Urraca e Dom Afonso I de Aragão, unidos pela política, mas também Dom Pedro I, o Cru, e Dona Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha, todos silenciosos sob as lajes de Alcobaça.

No Mosteiro dos Jerônimos descansam os reis e, em sua companhia, jaz aí também Vasco da Gama, que lhes fez a sua fama; Camões, que lhes cantou as navegações; Alexandre Herculano, que contou para nós suas histórias; e, também, Fernando Pessoa, para sempre em nossa memória.

Companheiro de Cabral, Caminha escreveu o primeiro documento em terras brasileiras:

E da nova terra achada,

a Carta ia mar afora:

nova terra conhecida. (p.49)

Era a carta do achamento, enviada ao Rei, contando-lhe o dealbar de nossa história. Talvez estas tenham sido suas últimas linhas, pois, logo depois, em Calicute (cidade mencionada por Degrazia em seu poema Viagem ao seio de Penélope), teve morte em combate.

Ao Romanceiro português segue-se o espanhol: Colombo, que agora descansa em La Giralda, de Sevilha, ora na pequena capela de Las Palmas de Gran Canária. Distraído, o ruflar de um pássaro, que ao poeta parece passos, trazem-lhe à memória Galdós. Sem mais, lembrou-se de nada menos do que Benito Pérez Galdós, contando a vida espanhola no século XIX. Trata-se de um escritor tão importante que Arturo Pérez-Reverte, discorrendo sobre estes autores que são para toda a vida, situa-o ao lado de Dostoiévski, Tolstói, Stendhal, Mann e Dickens.

Tendo subido pelo Tejo, ao alcançar Toledo, o poeta nos conta que

Na porta de Bisagra

um dia entrei,

cavaleiro andante

do que não sei.

Em Toledo resistirei

a qualquer ataque.

Aqui serei rei.

Mais que uma rima, vale aqui a força do rei. Quando promete resistir, é ao rei que resistirá. Cada um deve ter o direito de sentir-se como tal. Em minha casa, meu castelo, estarei rei. Aqui serei rei.

Mas ninguém consegue lugares importantes sem luta, nem quem herda, pois mesmo a herança precisa ser adquirida, disse Goethe. Metáfora dessa luta é a visita a Las Ventas. Pois acompanhemos o poeta a essa praça de Madrid onde, pelas ventas, bufa o touro. O tecido amassado entre as mãos de uma mulher, do poema O Rio Eterno, é agora a capa do toureiro, salmão e amarela, com a qual, com suas verônicas, atrai o touro e marca um destino. Aos pés do toureiro, o lenço da morena; na arena, uma vênia; na cama, o arrebatamento. E seguem as metáforas: na arena, a Malagueña dos cavaleiros; depois, morto o touro, o canto jondo (p.61), profundo, de cor espiritual. Manuel de Falla associa-o com a siguiriya cigana que começa com um grito terrível e continua com uma prosa cantada, pouco audível, que leva esse grande músico a pensar que o canto foi anterior à linguagem.

A terceira parte, O Templo de Apolo, começa com uma recomendação de Cavafis:

Quando a travessia empreendas até Ítaca

peça que seja longo teu caminho,

cheio de aventuras, pleno de saberes. (p.67)

Retornos implicam memória. Fora do tempo, o poeta sente-se desmemoriado. Contudo, basta-lhe um ruflar de asas, ou mesmo uma rosa adormecida, e, subitamente, a memória recupera o tempo. Cada folha, cada pétala de flor caída sobre o Rio Eterno forma novos círculos, cada um deles constituindo um novo mundo.

A flor – canta o poeta –, pode ser a notícia esperada, uma carta, um mapa,

quem sabe a própria existência que se mostra

como num velho livro de geometria. (p.70)

Mas o importante sonho de todos os poetas aparece no dístico do verso X do primeiro poema dessa terceira parte, o sonho de imortalidade:

Sê tu este deus que inventas

e serás eterno no poema. (p.74)

Não há imortalidade possível sem considerar o outro. O enlace da metáfora precisa mesmo – estou de acordo – envolver o próprio poeta. Afinal, diferente do historiador, como diz o Bacharel Sansão Carrasco, na segunda parte de Dom Quixote, o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deveriam ser. Ele só pode escrever o que acredita.

Aqui, em O Rio Eterno, o nome do poeta, viajante atemporal, é Ulisses, e diz assim:

Fragmentos somos no vácuo, CLINAMEN (p.77)

Pois certa vez também me ocorreu ver no divã do analista o clinamen, o plano inclinado de Demócrito a propiciar deslocamentos dos fragmentos de memória ali caídos.

E continua:

O mundo é a vaga que nos transporta

feito paralaxe, luz que não diz

o que propõe. (p.77)

E não é verdade? Quantas de nossas dissidências com o mundo devem-se aos enganos promovidos pelo fenômeno da paralaxe?!

Na procura de Ítaca, Ulisses sobe à Acropole e, aí, o poeta recita:

Estive diante da beleza

das oito divinas colunas,

o alto do Partenon subia

para o céu azul da Grécia. (p.81)

A Professora Maria do Carmo, em seu prefácio ao livro, está certíssima em sua observação: o poeta, frente a tudo que vê, extasia-se. As oito colunas dóricas, sob o frontão, raiam à perfeição. Quando Freud as visitou, fugiu-lhe uma exclamação, em inglês: too good to be true! Quando as vi, também chorei.

Alcançamos, finalmente, a quarta parte do livro. Ítaca se avizinha. Ulisses é transportado de Esquéria a Ítaca dormindo, e enuncia:

No mar das lembranças e do olvido

sou o barco que navega o mar tenebroso. (p.87)

Vagando entre a terra de Santa Cruz e Calicute, Grécia mediante, o poeta já pode acordar. Os lírios e as açucenas na janela trazem-no de volta à mulher amada.

Sem temer o desafio da vida e do destino do gigante cego

que somos a tatear na bruma de uma Odisseia preparada

desde o início dos tempos, nauta, astronauta, me apresento. (p.89).

O poeta agora sabe que Penélope, a que tece poesias, é o nome da memória.

Academia Rio-grandense de Letras

PATRONOS

CADEIRA 29

José Carlos de Souza Lobo

José Carlos de Souza Lobo nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no dia 11 de outubro de 1875, filho de José Teodoro de Souza Lobo e Rita da Graça Lobo. Estudou na Colégio Rio-Grandense de Porto Alegre. Formou-se bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Porto Alegre em 1904. Foi funcionário da diretoria da Instrução Pública do Rio Grande do Sul e advogado da Justiça Militar, em Porto Alegre.

No meio jornalístico, José Carlos Lobo foi diretor do Correio Mercantil e, em Porto Alegre, foi redator...

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